sábado, 5 de fevereiro de 2011

DIÁRIOS DE MOTOCICLETA

Mirando o outro lado, ele se jogou nas águas escuras. Ninguém havia antes atravessado a nado aquele rio caudaloso. Era noite, apenas pequenos pontos de luz eram avistados. Quem oesperava na outra margem? Por que, afinal, atravessar o rio?



Dizem que imagens falam mais que palavras. E quando imagens se fundem a palavras e
música, uma estranha magia se realiza. Por isso, o cinema, o teatro e a dança são linguagens poderosas. A cena retratada é uma das muitas do filme de Walter Salles, “Diários de motocicleta”, o qual, passada a euforia de seu lançamento e os holofotes da mídia, ainda nos faz ir além do dito e penetrar no profundo mistério do não dito. Apesar do seu célebre personagem, a trama autobiográfica do filme é feita de simples elementos: dois amigos, uma motocicleta e a América Latina como cenário. A simplicidade da trama tem, no fundo, a profundidade típica das estórias que nos comovem. Comover é um movimento interno, acontece precisamente quando nos movemos juntos (co-movemos), mobilizados por coisas que aparentemente nos são distantes e estranhas. Por isso, mesmo aqueles que não simpatizam muito com a imagem popular de Che Guevara, o guerrilheiro, podem se sensibilizar com Ernesto, o estudante de medicina, asmático, que, nas suas trilhas tortuosas com “La Poderosa”, percorreu quilômetros para encontrar algo inusitado.

“Diários de motocicleta” tem, portanto, o mérito de ser um o espelho, a partir das lentes de Salles, de algumas imagens cruciais na vida de Ernesto e de seu amigo Alberto Granado. Imagens que fazem pensar. No seu caminho, Ernesto brigou com o amigo, meteu-se em confusão, calejou os pés, viu a dor humana exposta na carne viva, ouviu o lamento dos excluídos, leu Mariátegui, contemplou a contundência da beleza e da crueldade, ambas feitas pela mão dos homens. Um dia, no turbilhão de sua existência, Ernesto tomou uma decisão fundamental. Este é um dos méritos de Salles: ter escolhido cenas que reverberam silenciosamente em nossa existência, porque mostram que, lá no íntimo, tudo que nos cerca é meio, simples caminho.

Ao seu lado, Ernesto teve um amigo e uma velha motocicleta. Tudo foi apenas um pretexto. O que Ernesto sempre quis encontrar era Guevara. Melhor, reencontrar, pois ambos sempre foram unos, mas precisavam, como rito de vida, atravessar o outro lado do rio. O que há na margem do outro lado? Apenas o outro, a humanidade em potencia, ou o reflexo vivo de nós mesmos. No fundo, a grande revelação do filme de Salles também está na cena final: os olhos de Ernesto, antes de entrar no avião, após finalizar a sua saga, não eram os mesmos. Simples o recado: depois que se atravessa o rio, não há volta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário