terça-feira, 12 de agosto de 2014

Gênio Indomável

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Michel Onfray, professor de filosofia, tem um curioso diagnóstico: “é um paradoxo, mas nós, professores, somos feitos para não existir”. A necessidade de um “desligamento” necessário sugerido por Onfray, de uma relação pedagógica pautada na busca da autonomia dos sujeitos (alunos e professores) me faz pensar sobre o filme “Gênio Indomável”, particularmente na relação terapêutica estabelecida entre os personagens Will Huting (Matt Demon) e Sean McGuire (Robin Williams).

Will morava num subúrbio. Trabalhava em empregos de baixa qualificação, saia com os amigos para beber, se divertir e arranjava algumas brigas, as quais lhe renderam algumas detenções; mas Will possuía uma diferença, ele era o que se convencionou chamar de “gênio”; mas era um “gênio indomável”, como bem sugere o título em português (no original Good Will Huting). Ocorre que Will foi descoberto “por acaso” por um professor catedrático em matemática, quando, ao fazer a limpeza no pátio da Universidade, resolveu um dificílimo problema de matemática deixado num quadro. Finalmente descoberto o autor da façanha, uma questão urgente deveria a ser resolvida: por conta de suas arruaças, um juiz determinou que Will poderia ficar em liberdade provisória, contanto que buscasse ajuda terapêutica regular, o que foi encaminhado pelo professor que o descobriu.

Com todo gênio, Wiil era realmente indomável. Resolvia problemas de matemática cada vez mais complexos, mas, porém, sua personalidade arredia
e seu temperamento construíram uma couraça que o tentava proteger do mundo. Will criou um verdadeiro inferno para todos os terapeutas que foram procurados. Até que Sea (Robin Willams) passou a ser o seu terapeuta. Tudo mudou desde o primeiro encontro. Will. Aos poucos Will passou a ser entregar no processo terapêutico, Mas mesmo quando ambos estavam envolvidos em seus diálogos, o terapeuta olhava o relógio e dizia “times is up”. E no final, após um emocionante processo de descoberta, Will pergunta: “É o fim”? “Sim, agora é com você, ’time is up’, disse Sean. Desde então, Will não mais voltou para o trabalho que fazia antes, tinha pegado a estrada, após ter conseguido um ótimo emprego, mas preferiu primeiro encontrar a garota que amava na Califórnia.

Parece que um pouco disso tem ligação com o que Onfray falou, claro que num
contexto diferente. Educação, como processo de autonomia (terapia?), é justamente isso: saber a hora de dizer ao aluno que o tempo acabou, que é hora de se virar, mas que há ali alguém para ouvir, e não só falar, e se falar, falar apenas de experiências e não de roteiros prontos; saber que existe a hora do encontro, do diálogo, mas que também há a hora da partida, e que aprender, apesar de livros, dos professores e dos métodos milagrosos, é uma decisão pessoal. Essa concepção não desonera o professor de suas tarefas essenciais, apenas reafirma uma ideia enfraquecida em tempos atuais: a responsabilidade pessoal
do aluno em sua formação, Por isso que Onfray, inspirado em Nietzsche, pensa que professor é aquele que faz tudo para que o aluno vire mestre, que siga seu caminho, sua estrada, aquele que sabe dizer “time is up”.



P.S. Texto feito em 2011... hoje, Sol em Leão, lua em peixes... sem Robin Willams

sábado, 19 de abril de 2014

SAJU - A PRÁTICA CONCRETA DA UTOPIA


Um texto antigo, dos idos dos 90, feito um aluno comum, qualquer um ...


sexta-feira, 7 de março de 2014

ISAAC




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As baratas continuavam a invadir a casa. Por entre frestas úmidas do grande sobrado, os pequenos insetos esgueiravam-se durante a noite, invadindo os cômodos desocupados. No piso superior, as baratas preferiam passear no estúdio abandonado, misturando-se ao pó dos quadros antigos, aproveitando a textura gasta das grossas cortinas de algodão. Já no piso inferior, o grande salão de festas era o palco predileto dos insetos silenciosos. Uma por vez, tal qual exército disciplinado, as baratas chegavam ao salão descendo pelo forro, voando pela janela, como tivessem sido convidadas para uma noite de gala. Dessa forma ordeira. elas iam se acomodando, comiam e bailavam,  dia após dia, sempre em número cada vez maior. Na medida em que crescia o número de insetos em casa, aumentava também no velho Isaac o seu amor por Laila.
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Sentado em sua cadeira de balanço, o velho Isaac tomava seu chá da tarde. Mesmo naquela hora, o barulhinho de pequenas patas se arrastando já poderia ser ouvido. O ocaso ainda derramava suas últimas luzes nos amplos espelhos da casa, quando o velho ouviu os passos de Laila. Ah... como era possível ainda lembrar dos olhos de sua falecida esposa. Grandes olhos de cor incerta, como pontos de luz perdidos em alguma direção. Então ela chegava, quase sempre no mesmo horário, pousava suas finas mãos sobre os cansados ombros de Isaac. Ele podia sentir as afiadas unhas de Laila arranhando o seu braço. O pensava em voz alta: “mor, que saudade eu tenho de suas unhas afiadas”. Mas sempre que ele murmurava tais pensamentos as baratas não se incomodavam, continuavam impassíveis, saboreando a carne do bom velho Isaac.

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À noite, como fazia há anos, Isaac vestiu seu terno preto. Apesar dos anos de prática, já não conseguia dar um nó simétrico. E como sempre acontecia, ao descer a grande escadaria rumo ao salão, vinha-lhe a imagem da grande festa de 1935. Lá estavam todos os seus amigos. Marcos Silva, recém-chegado do exército, e sempre com seu traje impecável. Catarina, a enigmática Catarina, vestida com panos flutuantes, falando alto, empolgada com a música e o vinho. Pais, tios, até o seu avô, Abraão, estava já. Um momento verdadeiramente inesquecível, justamente porque no meio da multidão, em pleno clima vaporoso, um olho cintilante brilhava, era ela: Laila.
Não foram necessárias palavras. Isaac lembrava-se da forma instantânea em que os dois se olharam, e, num encontro repentino dos seus corpos, passaram a dançar no imenso salão. Enquanto se embebedava com as lembranças, Isaac rodopiava no agora empoeirado salão. Como naquela noite inesquecível, agora também todos os olhos estavam voltados para o casal. Só que agora os pequeninos olhos, diminutos pontos na escuridão, não conseguiam entender tamanha empolgação do velho Isaac.

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Após todo o ritual de lembranças, o velho Isaac ia se recolher. Deitado em sua grande cama (o espaço ao seu lado não era menor que a dor de sua alma), Isaac descansava seu velho ser fatigado de imagens. Porém, como também já vinha acontecendo há anos, antes de dormir Laila lhe acariciava o corpo, e o velho sentia na carne suas unhas afiadas, o passear delicado de suas mãos, até que ele sentia um toque úmido nos lábios. Só depois deste rápido contato, o velho Isaac poderia dormir em paz, e as baratas se despediam do bom velho, desaparecendo em seus obscuros esconderijos, à espera de um novo encontro, ansiosas por novos gestos de amor.


Vladimir Luz (Conto publicado na Revista da Academia Criciumense de  Letras, 2005)

Gravura: "En el baile" de Edward Cucuel

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A GRANDE BELEZA



"O mundo é uma obra de arte que engendra a si própria'
(Nietzsche, Vontade de Potência)



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Não era uma questão de opção: ele estava destinado à sensibilidade. Deitado em sua cama podia ver o mar no teto com todo aquele azul intenso e infinito. Ondas, ondas. Da sacada de seu apartamento, o Coliseu se abria aos olhos como um quadro. Outrora homens ali morreram e se divertiram, sangue e risos foram gravados em cada tijolo daquelas colunas magistrais. Mas sempre ela, sempre ela, a sensibilidade. Festas, riso, dança, sexo, rotina, e sempre ela a espreitar, a sensibilidade. Ele era assim não por simples decisão, era seu mandato ser um observador metafísico, mundano, irônico e incrédulo dessas coisas intensas e ao mesmo tempo ridículas que somos. 

No meio disso tudo, por certo, havia uma busca inaudita. Quem saberá? Quem poderá ver a grande beleza? Mas o fato mais latente é que havia uma profundidade imperceptível em toda superfície, e ele bem sabia disso. Fenomenologia, diriam os doutos. Cada detalhe, como as reentrâncias e cores do mosaico da Via Triumphalis,  cada gesto humano, por mais fútil e banal, espancava-lhe a sensibilidade inata e bruta. Era como não se lhe fosse dado o direito de ignorar que, mesmo com toda sua grandiosidade, há frestas no Coliseu. As ruínas são os corpos esquecidos do novo. O novo esta nas fissuras. Seres humanos participam compulsoriamente desse enredo. Basta ver o que se gravou em cavernas, papiros, pergaminhos e blogs. Pobres animais falantes, irremediavelmente jogados na consciência do constante vir-a-ser, que buscam, inconscientemente, gravar algo sólido e imemorial no presente fugidio. Tudo então se resumiria  essa longa história depois do verbo , a frestas e rugas, pedra e carne. No pó das ruínas sim, ali havia uma essência, séculos de ontologia: início e fim. Por tudo isso, amiúde ele percebia que em cada gesto humano há uma clareira, um enclave, um lugar cinza entre o velho e o novo, um campo agônico entre o grandioso e o fútil. Por isso, então, temos a arte, essa testemunha parida das coisas que só a sensibilidade captura. E ele olhava tudo isso com aquele olhar de quem já viu muito, viveu muito. E mesmo com tanto, escrevera apenas um livro. Para que mais? Para que? O final já não é por demais sabido desde o início? Festas, riso, dança, sexo, rotina e ela, sempre ela, a sensibilidade; aquela que não o deixaria nunca, mesmo agora quando tudo já tinha o cheiro ácido do tempo. Jep Gambardella acabara de completar 65 anos.

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Li muitas coisas sobre o festejado filme de Paolo Sorrentino "La Grande Belezza". Coisas como: a influência de Fellini, Roma como cenário, a multiplicidade de temas num roteiro não linear, um conflito entre o novo e o velho, clássico e pós-moderno, uma crítica à futilidade da sociedade e à superficialidade da arte contemporânea, decadentismo, brevidade do tempo, existência, hedonismo, enfim, um filme pretensioso... Respondo a tudo isso com “Jepinho”: blá, blá, blá.

Nada disso, isoladamente, parece-me tão relevante assim. Ainda que haja, de fato, todas essas questões – o que já faria do filme algo genial –, "La Grande Belezza" trata, em verdade, de algo infinitamente relevante e sutil: a experiência da vida como uma experiência estética. Aí a coisa pega, e pega a todos nós. Ademais, não só por Roma e pelos personagens caricatos vemos a presença de Fellini em “A Grande Beleza” como dizem insistentemente os críticos. O grande maestro se faz presente no elemento onírico que atravessa todo filme, mitigado, é certo, pelo estilo próprio de Sorrentino. O que atravessa é o absurdo da realidade e do cotidiano, dos tipos humanos, o ridículo que convive com a beleza, e, em meio a tudo isso, ao lado de toda superficialidade, do medo e de todas as belezas, há sempre a grande beleza, aquela que não precisa de uma razão controladora. Ela é. Para a grande beleza, há também uma “grande arte”. É essa experiência estética em estado bruto que chega, que toca. Tudo isso é decantado finamente num roteiro propositalmente repleto de experiências e tipos humanos: o padre (cotado a Sumo Pontífice) que jocosamente foge dos assuntos sérios e espirituais e fala de receitas, a vida mundana de novos ricos e suas festas bregas, os nobres decadentes com suas mansões suntuosas, a religiosa tratada como “santa”, a pintura contemporânea feita por uma criança que joga tintas aleatoriamente em um painel. No centro do filme esta o olhar de Jep Garmbardella, um “bon vivant”, um cético jornalista que escrevera apenas um livro, e que vive os tormentos do tempo e a lembrança da mulher que amara. É neste aspecto sutil que o filme "La Grande Belezza" pode ser chamado, sem exageros, de obra-prima: exatamente pela experiência estética proporcionada pelos olhos de Jep Gambardella. Jep somos todos nós. Dessa identidade humana é que se faz a grande arte.

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Jep Gambardella escrevera apenas um livro. O que ainda há por ser dito? Tudo já foi descoberto pela razão. As coisas inevitavelmente passam. Pessoas morrem. Frestas ficam. Cicatrizes. Talvez possamos, à noite, encontrar aquele amigo que é o guardião das chaves dos palácios para então passear por entre os salões da tradição e assim trapacear com o tempo. Talvez possamos nos fechar ao falatório do cotidiano. Ir ao silêncio dos antepassados e beber dos clássicos seu vinho raro. Tocar o mármore primevo do sentido com o cinzel utilizado pelo demiurgo que deu forma e vida a tudo isso que não se explica. Mas Jep sabia que não há escapatória: há festas, riso, dança, sexo, rotina e ela, sempre ela, a sensibilidade. No fundo, o instante desencontrado do amor é a grande arte, seja ela o que for.

Por tudo isso é que não se consegue sair do cinema imediatamente após o término de a “A Grande Beleza”. Letras descem (ondas, ondas) e lá ficamos, paralisados. Entramos em nosso Coliseu. De repente, por segundos, pairamos em um território inóspito de nós mesmos, onde girafas, cadeiras e o cinema desaparecem. É que ela, mais uma vez ela, sempre esteve ali: nesse lugar que às vezes voltamos, mesmo sabendo que tudo é um truque.

Bravo!


08.02.2014
Vladimir Luz




segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

SUA ESCRITA


Quisera eu escrever assim

Como um dia em Laranjeiras
Uma tarde em Botafogo
Um pôr-do-sol na Gávea
Um olhar perdido na Tijuca
Naves em Niterói

Escrita como um amor instantâneo
Como essas pedras colossais
Granito e suor

Quisera eu escrever assim

Com vísceras
Com alma (lavada ou não)
Ser que recusa ser ente
Pão saído do forno
Café no copo
Sono abraçado
Uma mão que se estende entre praças
Monumentos de prazer e ócio
Corpos que se devoram (na esquina do Leme)

Quisera eu escrever assim

O Rio seria palavra inaudita
Ferida
Partida
Encontro

Aí sim - eu escreveria como você.


20.01.2014

Vladimir Luz
(Revisão, diagramação e afins de Rosane Serro)