sexta-feira, 7 de março de 2014

ISAAC




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As baratas continuavam a invadir a casa. Por entre frestas úmidas do grande sobrado, os pequenos insetos esgueiravam-se durante a noite, invadindo os cômodos desocupados. No piso superior, as baratas preferiam passear no estúdio abandonado, misturando-se ao pó dos quadros antigos, aproveitando a textura gasta das grossas cortinas de algodão. Já no piso inferior, o grande salão de festas era o palco predileto dos insetos silenciosos. Uma por vez, tal qual exército disciplinado, as baratas chegavam ao salão descendo pelo forro, voando pela janela, como tivessem sido convidadas para uma noite de gala. Dessa forma ordeira. elas iam se acomodando, comiam e bailavam,  dia após dia, sempre em número cada vez maior. Na medida em que crescia o número de insetos em casa, aumentava também no velho Isaac o seu amor por Laila.
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Sentado em sua cadeira de balanço, o velho Isaac tomava seu chá da tarde. Mesmo naquela hora, o barulhinho de pequenas patas se arrastando já poderia ser ouvido. O ocaso ainda derramava suas últimas luzes nos amplos espelhos da casa, quando o velho ouviu os passos de Laila. Ah... como era possível ainda lembrar dos olhos de sua falecida esposa. Grandes olhos de cor incerta, como pontos de luz perdidos em alguma direção. Então ela chegava, quase sempre no mesmo horário, pousava suas finas mãos sobre os cansados ombros de Isaac. Ele podia sentir as afiadas unhas de Laila arranhando o seu braço. O pensava em voz alta: “mor, que saudade eu tenho de suas unhas afiadas”. Mas sempre que ele murmurava tais pensamentos as baratas não se incomodavam, continuavam impassíveis, saboreando a carne do bom velho Isaac.

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À noite, como fazia há anos, Isaac vestiu seu terno preto. Apesar dos anos de prática, já não conseguia dar um nó simétrico. E como sempre acontecia, ao descer a grande escadaria rumo ao salão, vinha-lhe a imagem da grande festa de 1935. Lá estavam todos os seus amigos. Marcos Silva, recém-chegado do exército, e sempre com seu traje impecável. Catarina, a enigmática Catarina, vestida com panos flutuantes, falando alto, empolgada com a música e o vinho. Pais, tios, até o seu avô, Abraão, estava já. Um momento verdadeiramente inesquecível, justamente porque no meio da multidão, em pleno clima vaporoso, um olho cintilante brilhava, era ela: Laila.
Não foram necessárias palavras. Isaac lembrava-se da forma instantânea em que os dois se olharam, e, num encontro repentino dos seus corpos, passaram a dançar no imenso salão. Enquanto se embebedava com as lembranças, Isaac rodopiava no agora empoeirado salão. Como naquela noite inesquecível, agora também todos os olhos estavam voltados para o casal. Só que agora os pequeninos olhos, diminutos pontos na escuridão, não conseguiam entender tamanha empolgação do velho Isaac.

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Após todo o ritual de lembranças, o velho Isaac ia se recolher. Deitado em sua grande cama (o espaço ao seu lado não era menor que a dor de sua alma), Isaac descansava seu velho ser fatigado de imagens. Porém, como também já vinha acontecendo há anos, antes de dormir Laila lhe acariciava o corpo, e o velho sentia na carne suas unhas afiadas, o passear delicado de suas mãos, até que ele sentia um toque úmido nos lábios. Só depois deste rápido contato, o velho Isaac poderia dormir em paz, e as baratas se despediam do bom velho, desaparecendo em seus obscuros esconderijos, à espera de um novo encontro, ansiosas por novos gestos de amor.


Vladimir Luz (Conto publicado na Revista da Academia Criciumense de  Letras, 2005)

Gravura: "En el baile" de Edward Cucuel