segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Memórias I – Vó Conceição

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Todas as manhãs, um ritual: o cheiro inigualável do café. Mesa posta. A “farda” do colégio já estava passada. Eu ainda ficava na cama por algum tempo. Meticulosamente, para que eu pudesse dormir um pouco mais, ela colocava as minhas meias, bem devagar, e eu, mesmo acordado, fingia estar dormindo. No caminho da escola, ela me dava a mão. Uma mão áspera de quem passou pelos fardos da vida; mas uma mão igualmente terna e segura, de quem queria, até com excesso, zelar e guiar os Seus. O caminho era curto, mas lembro de cada passo. É assim que me recordo das manhãs com minha Vó Conceição. De tudo que passamos doravante, as brigas, os conflitos, resta ainda essa imagem, a do menino que fui, franzino, acanhado, que ia para escola todas as manhãs com um sentimento único: o de não estar sozinho no mundo. Até hoje quando sinto aquele cheiro inigualável de café, quando rumo para o trabalho, e me acomete um certo estranhamento da vida – sensação de quem pensa muito nas coisas desse mundo – relembro de quando ela me dava sua mão. Então, sem pensar, sigo, sigo...

sábado, 18 de setembro de 2010

IRA III (Da série: meus pecados prediletos)

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A tua palavra transpira medo

Medo de ser como eu sou

Medo de não poder não ter medo

Medo de não poder deixar de se esconder em bem-estares

Medo do teu desejo que cedeu às convenções

Medo dos teus sonhos que cederam à vida burguesa

Medo de olhar opções que não foram as tuas melhores opções

Eu, o indigno, o impuro, o sujo, sou o alvo do teu medo

Atira, então, a primeira pedra do teu medo

Atira de forma rápida e certeira o petardo do teu rancor-moral
porque assim teu medo se transformará na moral pálida de muitos

Muitos gritarão contigo: morte ao herege!

Age, outrossim, como um filisteu, com um hipócrita, como um medíocre

Vive, ao lado dos teus, do teu gado, dos acomodados, dos normais

Rumina toda essa grama podre de veleidades colhida no pasto da tua vida caiada de branco

Vai, como Catilina, tecer intrigas, bisbilhotar à noite, afiar facas e preparar venenos

Pois eu, como Giordano, prefiro queimar a ter cravado no peito a lança do teu perdão imundo

E que a morte nunca chegue ao teu leito

É melhor que vivas eternamente

Sejas feliz para sempre – e com medo


Vladimir Luz

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

OLHAR

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Meu lado direito é o melhor lado

Nele você me vê como sou

Do lado esquerdo, apenas os sonhos

De frente, máscaras que sorriem

Mas você, sabe-se lá como, é capaz de me ver

Num instante, parco e miúdo

Num riso, terno e irônico

Deixo de ser quem eu sou

Fico mudo

Parado

Como se fosse apenas um vazio sem dono

Um pretexto

Uma desculpa esfarrapada

Um sinal que diz: olhe para o lado


Vladimir luz