quinta-feira, 15 de outubro de 2009

OUTUBRO


No meu cofre tenho apenas palavras
Todas embrulhadas em papel manteiga
Cuidadosamente úmidas
Avidamente dispersas
Além disso, nada mais tenho
Nada construí de cimento e cal
Nenhum metal, nenhuma flâmula
E se queres algo de mim, não espere algo útil
Nada além de fonemas
Sílabas, sons catados aos poucos

No meu espelho há apenas amores
Miúdos, bem miúdos a fustigar imagens
Amores picantes, a esconder o rosto rubro
Amores tristes, desfeitos antes de começar
Amores alegres cheios de ventania, batendo portas na noite
Aquele brilho vindo de algum lugar
Pontos de luz que se afogam
E se queres algo além desse reflexo
Abraça-me hoje, apenas hoje – e cala

Na minha poesia há sempre inícios
Saltos cegos no abismo
Passos em falso, tato claudicante
Esse começar que tudo quer e ambiciona
Essa fome de ser que basta por ser fome
E se queres algo além disso
Permita que eu siga meu caminho
Deixa-me onde estou
E que meu caminho seja assim
Apenas constante transbordar

Pois de tudo o mais que restar, se algo sobrar
Restará um homem sem pátria
Vazio de tudo e repleto de tudo
Restará nada, absolutamente nada mais do que sou
Intensamente eu

Vladimir Luz - 14.10.2009

domingo, 4 de outubro de 2009

MEU TEMPO

Estamos perdidos
Estamos partidos
Caminhando; para onde?

Estamos sem teto
Estamos sem morada
Ao longe um destino; para quem?

Estamos insones
Estamos sem fome
Uma placa anuncia; quais motivos?

Estamos aqui
Frente a frente
Nada que impeça
Nada para amar

Simplesmente


Vladimir Luz

terça-feira, 25 de agosto de 2009

ANIVERSÁRIO



Arde sempre, e aqui, essa volta antiga de se ver
Esse cheiro forte de café recém passado
Esse corpo nu, com olhar de azul pintado no teto
Essa maneira repentina de abrir portas e janelas
Feito menino pulando entre ladrilhos no corredor da escola

Vem de longe essa cantiga leve de dormir
Fina, bem fina, passeando no sub-solo da alma
Mulher sem rosto, mãos dadas atravessando a rua
Homem apressado, esperança afoita do amanhã
Luz, pálida luz, entre pernas amarradas na cama

Não é de agora tudo isso
Esse desejo repentino
Uma espécie de fogo morno, constante
Queimando suavemente a existência crua
Deixando apenas um leve cinza
Fina inscrição de pegadas
Embalada pelo som familiar da poesia
Essa voz sem motivos e sem razões
Filha da mais leve incerteza
Ou do mistério, esse desatino, sempre ele,
A cantar mais um novo aniversário


25.08.2009.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O Leitor

Culpa, memória e perdão. Três idéias seminais, materializadas em atitudes e valores que marcam decisivamente nosso laço social. Não há duvida que o nosso mundo ocidental foi simbolicamente construído a partir dos desdobramentos atribuídos a essas três palavras, basicamente das oposições entre culpa e pecado, bem e mal, verdade e ilusão, condenação e perdão. É sobre todo esse material intensamente humano que trata o filme “O leitor”, baseado no romance homônimo de Bernhard Schlink. A questão central posta por Schlink é seguinte: diante da evidência da culpa de quem se ama, seria possível o perdão?
Alemanha hitlerista. Aos quinze anos de idade, Michael Berg se apaixonara pela já madura Hanna Schimtz. Tudo se deu ao acaso, quando Hanna o socorreu após um mal estar num dia de chuva. Padecendo de hepatite, após longo repouso, Michael foi reencontrar e agradecer aquela mulher misteriosa que prontamente o ajudou. Nos rotineiros encontros que se seguiram, Hanna curiosamente lhe pedia que lesse os livros que estudava no colégio. Michael foi o seu amante e seu leitor. Ao longo da película, Michael, já adulto, relembra todos esses instantes de leitura, sexo e paixão em flashbacks. Após a partida repentina de Hanna, ele foi estudar direito em Heildelberg, quando, após a Segunda Grande Guerra, numa de suas idas como estudante para o julgamento de nazistas, viu que o seu antigo amor estava agora no banco dos réus. Hanna, mesmo diante da pressão pós-Guerra, pois admitia sua participação na seleção de mulheres no campo de Auschwitz. E quando indagada pelo juiz da causa do por quê de não ter aberto a porta de uma igreja em chamas para salvar prisioneiras da morte, disse: “O que o senhor teria feito, então”? Hanna foi condenada à prisão perpétua.
“O Leitor” não é uma obra apenas sobre o nazismo ou as contradições entre a moral e o direito, entre o dever e a justiça. Há algo de extremo na memória de Michael, algo muito mais forte do que a culpa que Hanna talvez nunca tenha sentido. Toda essa reflexão faz lembrar uma outra “Hanna”, a pensadora judia Hannah Arendt, que por ironia do destino amou Heidegger, o grande filósofo que aderiu ao Reich. Heiddeger, apesar de todo clamor, nunca se desculpou, e Arendt, apesar disso, sempre o amou. Talvez o amor seja isso, um esquecimento sem culpa, um silêncio sem dor, um desencontro que não precisa de perdão...