terça-feira, 29 de julho de 2008

ILUSÕES

.....................

Eu tenho um encanto que sempre se desespera
Um encanto noturno – angústia de viver

Eu tenho mãos de escriba
Mãos sedentas - cerradamente à espera

Eu tenho o gosto do fim
Pois em minha boca congelaram os beijos do passado

Eu tenho em mim a fronte do pecado
A marca de Caim, o apelo invisível da queda

Eu tenho muito pouco
Apenas o segundo que passa
Instante sem nexo nem amor
– pedaço de mim que se vai

Pedaço partido do que sou


29.07.2008
Vladimir Luz

segunda-feira, 21 de julho de 2008

CORINGA

.................


Olhe, pare, respire
Um segundo, uma esquina
O destino, um desatino

É isso que se mostra sem rodeios
Um resto de noite e chuva
Aquela luz fraca que se apaga

Resta uma lei, um decreto
O olhar da esfinge
A resposta do oráculo

... é arriscado viver


21.07.2008Vladimir Luz

quinta-feira, 17 de julho de 2008

CONFISSÃO

....................


Não quero te falar de amor
Deixo isso para os poetas e filósofos
Essa gente sabe tratar deste assunto melhor do que eu

Também não vou te fazer promessas
Dessas que a gente ouve nos boleros
Coisas que o ego precisa como ilusão de segurança

Quero apenas pegar em tua mão
Beijar o teu corpo nu
Pousar meu corpo em teu ventre
E poder dormir com teu cheiro

Quero, enfim, ter a coragem de confessar minhas fraquezas
E ainda assim ser teu homem e teu amparo
Capaz de ter a força suave de ouvir e compreender
Com a meta sutil de fazer de cada dia uma aventura

Se tudo isso for possível
O passado será apenas cicatriz sem dor
A vida não precisará mais de rótulos
O instante e o tempo serão unos
E, ao sentir sua mínima presença,
Serei já
feliz





15.07.2008Vladimir Luz

sexta-feira, 11 de julho de 2008

ALGEMAS E BRIOCHE

....................
Vladimir de Carvalho Luz

O pitoresco episódio protagonizado por Maria Antonieta nas vésperas da revolução francesa (1789) lembrou-me a forma simbólica como grande parte da elite jurídica nacional insiste em se comportar em relação a determinados fatos de impacto geral, notadamente no campo penal. Refiro-me especialmente à declaração recente do presidente do STF acerca de certos excessos relativos às prisões realizadas pela Policia Federal de personalidades como Naji Nahas, Celso Pitta, Daniel Dantas, dentre outros. No caso específico, com ar grave, o presidente da mais alta Corte do Brasil manifestou sua preocupação com o uso abusivo de algemas, o que seria incompatível com um Estado Democrático de Direito. Tal declaração, em que pese ser correta em seu sentido jurídico-formal, revela o padrão clássico de “insensibilidade social” travestida sob a forma ingênua de uma indignação jurídica ad hoc.

Reza a história (ou a lenda) que, ao saber que uma turba faminta clamava por pão em frente do Palácio de Versalhes, Maria Antonieta teria dito “Se o povo está com fome e não tem pão, que coma brioche". A pitoresca frase da esposa do rei Luís XVI sempre é usada como um exemplo clássico de uma espécie de “autismo social” típico das elites, incapazes (conscientemente ou não) de ver as contradições reais que a cercam. Afinal, pensando formalmente, é correto afirmar que brioches, assim como pão, matam a fome. Talvez o povo faminto – esse pequeno detalhe, ao qual não se devem muitas satisfações – tenha entendido mais do que o sentido formal (correto) da frase de Maria Antonieta, mas o seu sentido simbólico. Tal padrão parece ser universal e muito comum em contextos em que a elite se acha ainda confortável no seu mundo de vidro, ou de grades e gabinetes, como no Brasil.

Esse desprezo, esse alheamento e esse descaso que o discurso da elite revela em face das tensões da vida cotidiana cabem bem na boca dos juristas, acostumados, via de regra, a separar o formal do material, a vida da lei, a legitimidade da legalidade, tudo em nome de uma pretensa verdade (mascara tosca de ideologia) ou de uma autoridade quase sacra. O ponto é simples: o que significa, simbolicamente, a indignação pública e específica do presidente do STF no episódio das mencionadas prisões? Sejamos francos. O que deveriam pensar (tal qual a turba de Versalhes) os milhares de brasileiros e brasileiras cotidianamente submetidos às algemas, à tortura (Tropa de Elite?) e ao descaso das autoridades públicas ? Como deveriam interpretar essa frase os milhares de “cidadãos não-banqueiros ou não-políticos, que presumidamente são inocentes, mas ficam algemados nos salões de júri? Que compreensão teriam – se lhes é lícito compreender o que enuncia o oráculo dos doutos, aqueles para os quais o Estado Democrático de Direito sequer foi oferecido como ilusão? Dirão alguns: trata-se de um pronunciamento sobre um caso específico. A dúvida que fica, porém, é por que os outros casos (centenas quiçá) de ação brutal e excessiva do direito penal, como a criminalização dos movimentos sociais, só para citar um exemplo, não está na fala costumeira desses “mandatários” do Estado Democrático de Direito?
Uma ressalva final: acredito que ter o mínimo de sensibilidade social em uma sociedade cindida em extremas desigualdades reais, como o Brasil, não significa, notadamente no mundo dominado pela mídia, “jogar para a torcida”, tampouco exercer a fala “populista”. Não. Mas não se pode mais deixar de notar o sentido simbólico dessa falas gerais das elites, surgidas em situações pontuais, apoiadas pelo corolário de uma igualdade formal e de uma neutralidade que nem mesmo o ideário liberal clássico suportaria, tamanha a sua “ingenuidade”. Num mundo real, e não de ficções jurídicas, não é lícito subtender que a crítica pública das algemas, feita pelo bem-intencionado presidente do STF, era dirigida a quaisquer algemas e não àquelas que prendiam especialmente os nominados envolvidos (cidadãos iguais a todos).
Não sei se a elite brasileira, notadamente a jurídica, algum dia deixará de falar como se estivesse num mundo de fantasias. O clamor pela injustiça horrenda das algemas em cidadãos tão exemplares, em contraste com os outros tantos (nem sempre citados) que furtam melancias, é apenas um “ato falho”. Os juristas em geral, cercados por suas boas razões, verdades e ingenuidades, adoram oferecer ao povo o “brioche” sofisticado de suas decisões, não desconfiando que talvez o povo, essa coisa abstrata e distante, sabe bem qual a diferença real entre algemas, pão e brioche. De alguma maneira, a historia demonstra que as elites dominantes custam a entender o efeito de suas “insensibilidades”. Maria Antonieta e Luís XVI entenderam tarde demais.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

ENCONTROS

.......




Deixa a mesa posta
A janela aberta
O riso solto
A porta sem chave

Observa o segundo passar
A dor secar
A flor parir e o vento bagunçar os papéis

E quando o sono vir
Comemore a morte do dia
Abrace o travesseiro sem cobranças

Assim virá mais um dia, e mais um outro dia

É esse o absurdo que nos ronda
Em cada esquina uma sombra
Em cada corpo uma marca
Em cada lembrança uma escolha

Deixa apenas o cenário pronto
A mão espalmada
Pupila dilatada
A alma nua

Quem sabe assim, um dia, como aquele depois do outro
Contando com tamanha distração e desleixo
Essa coisa chamada amor vire mais que palavra
Seja mais que promessa vulgar de felicidade
Seja o toque repentino – acidental e sem razão –
de um simples encontro
09/07/2008

segunda-feira, 7 de julho de 2008

PROFILAXIA AMOROSA

.......

Não está no manual
Não é igual como nos filmes
De nada adianta o vasto currículo
Conselhos? Todos inúteis...
Avisos? Sem efeito...
Aquele caso passado? Não se aplica...


Há quem deseje achar vacina
Mas mesmo assim sofrerá com o efeito placebo
Começa com olhar, depois vem a frase ocasional
Sucedem-se os jogos: telefonema, agora ou depois?
Síndrome aguda que leva à completa idiotia
Eu já desisti de achar modelos preventivos
Sei que tem gente que quer se especializar no assunto
Há especializações em várias áreas: casamentos-pra-suportar-a-solidãoHá mestrado em “pessoa certa” e doutorado em “felizes para sempre”

Apesar de tanto profissionalismo, nesse campo não tenho destreza
Assim, pelo menos, a indústria do bolero agradece:Em matéria de amor serei sempre um “amador”

06 de julho de 2008
Vladimir Luz

quarta-feira, 2 de julho de 2008

2 DE JULHO

.............

Sobe a ladeira da vida
Penhor de sol e mar
Brasa ardente na pele ancestral
Ocaso de lanças e danças sem fim


E na subida observa quantos se foram
Observa as correntes partidas, os amores partidos
Observa a criança nua, gesto cativo da mãe
Observa a luz de tantas eras, escuridão revivida
Ouve, então, o som do tambor da guerra, o mesmo da alegria
Atento ao silêncio dos livros oficiais
Ao rumor do dia que sempre começa
Parto de Justiça, machadinha de Xangô
Tropeço, dança, grito na rua estreita


Sobe, sem medo, a ladeira da vida
No seu topo não há fim, não há chegada
Apenas mirante, apenas miragem
O fardo feliz de que se pode, enfim, viver
E lutar


02.07.2008Vladimir Luz

domingo, 29 de junho de 2008

SOLSTÍCIO

Café, calor, cama

Ilusão, Ilha

Laço apertado, ardor

Sal, suor

De todas as rimas, o silêncio
De todos os amores, a morte

Três vezes a fé no absurdo
Três passos para o abismo
Em suma: amanhã.

30.06.2008

Vladimir Luz

terça-feira, 10 de junho de 2008

MEUS PECADOS PREDILETOS - III IRA

Eu te acuso, você que

... regula cada gota do seu precioso sangue, e quer ter seu sangue procriado em outro quando não mais puder ver os Seus nesta terra vagabunda de lágrimas, nutrindo o mesmo afã de um vírus, dando a este produto o nome pomposo de “família” ;

Você que .

.. deseja a felicidade coletiva, mas calcula precisamente seu bem-estar pessoal, sempre dosando a areia preciosa de sua ampulheta na mira do seu sono tranqüilo, e chama isso de “instinto de sobrevivência” ;

... acha bonita a compaixão e a esperança. e chega a olhar para o homem da cruz com júbilo, mas desconfia secretamente da natureza humana, e se encolhe na sua concha a observar precavidamente tudo que é alheio;

Você que não é bom nem mau, pairando habilmente nessa azáfama humana, sendo visto quando importa, e se escondendo quando vai ser atingido, falando apenas o que se quer ouvir e calando para não ser o próximo alvo do lobo que sempre se esgueira à sombra;

... que sabe exatamente aonde pode chegar na vida e por isso mesmo não se desespera nem arrisca, colhendo cada moeda duramente guardada nos tempos em que a cigarra te alegrou no inverno;
... que é tolerante na medida que a tolerância importa para te tolerarem, e que sabe ter virtù mais do que fortuna.

Por tudo isso eu te acuso,
E com o gosto do meu escarro eu te condeno,
finalmente,
À felicidade eterna.

10.06.08 Vladimir

quinta-feira, 5 de junho de 2008

O curso de Direito da UNESC

Não será preciso, agora, medir palavras, ter pruridos, tampouco iludir-se em ser imparcial; necessário se faz, portanto, ir direto ao ponto: algo de muito bonito aconteceu na Cidade de Criciúma, há pouco mais de dez anos, quando ali se formou um singelo curso de graduação em direito na Universidade do Extremo Sul Catarinense.
Dentre muitos termos, a palavra “bonito”, mesmo podendo invocar um tom jocoso, ridículo, precário ou mesmo démodé, é a expressão mais honesta da qual me valho preliminarmente para sintetizar uma experiência peculiar de atividade universitária; uma experiência de convívio humano que raramente acontece e, como tudo que é humanamente “bonito”, é igualmente frágil e tem sempre como horizonte possível o olvido decorrente do silêncio das gerações que lhe sucedem. É sobre este algo “bonito”, que foi e é muito mais que a história de um curso universitário no interior de Santa Catarina, que eu busco, aqui, em breves linhas, deixar um testemunho com o olhar de quem pôde vivenciar seus êxitos, seus fracassos e seus desafios. Diante de tantas coisas a relatar e a gravar na memória dos que virão, destacarei – com o meu olhar míope e parcial – apenas um aspecto fundamental do curso de direito da UNESC, algo que, para além da estrutura acadêmica e curricular, das rotinas procedimentais ou mesmo do projeto pedagógico formal, pode ser entendido como a sua marca principal, seu elemento fundador, ou seja, aquilo que os gregos denominavam de philia.
Para mim, tudo começou por um engano: “Alô, queria falar com ‘fulano’, disse o então coordenador adjunto de curso de direito da UNESC à época, Carlos Magno. “Não, essa pessoa não mora aqui”. Disse-lhe, então, que era “o Vladimir”. Como num estalido, após breve silencio, o Magno lembrou que também precisava falar comigo, que meu nome teria sido mencionado por uma amiga para lecionar, caso houvesse uma necessidade urgente. No final das contas, aquele engano teria dado certo, pois de fato havia a urgência em se conseguir um professor de IED (Introdução ao Estudo do Direito). Sem saber onde ficava Criciúma, norte, sul, leste ou oeste, lá fui eu.
Em 2001, logo que ingressei na UNESC, a idéia de se construir um curso de direito crítico e humanista encravado na cidade de Criciúma, inspirado talvez por influência do exemplo histórico da UFSC, apesar de claramente discutido e delineado, encontrava inúmeras resistências. Havia os que pensavam, e ainda pensam, alunos e professores, que o mercado deveria dirigir e determinar os objetivos da academia, e, no campo do direito, a formação técnica e dogmática deveria ser o tom, a linha do curso. Premidos por essas tensões, lembro-me de um slogan surgido na época: o curso de direito tem muitos filósofos e nenhum advogado. Muitas foram as disputas ao longo desses dez anos, rusgas internas e externas, acirradas por um rico ambiente universitário marcado pelo voto universal, características que, por si só, mereceriam outro relato específico. Tudo isso ficará, creio eu, devidamente registrado. Para mim, neste momento, importa saber como este projeto, pressionado por tantas forças contrárias, conseguiu resistir e alcançar notórios êxitos, ou seja, o que, no fundo, lhe deu efetivo suporte?
A philia, para o gregos pós-socráticos, comumente traduzida por “amizade”, era o principal vínculo que tornava possível a vida comum, a vida da polis, a vida humana, que nada mais era, para os helenos, senão o convívio entre os diferentes. Os gregos antigos, nossos “pais fundadores”, bem sabiam que a philia era justamente aquilo que possibilitava, para além de uma afectio pessoal, o espaço político da vida em comum, sendo ela o campo de intersecção, o hiato preciso em que se constituía o próprio espaço aberto da convivência, da vida que não é puramente mais algo pessoal e doméstico (oikos), mas uma vida partilhadamente projetada: uma comunidade. É realmente difícil, para nós, homens e mulheres do presente, entender exatamente o sentido pleno e político do arcaico termo philia. Para nós, ocidentais do século XXI, grosso modo, a amizade é uma expressão meramente individual de se relacionar, um elemento de nossas relações privadas, um círculo das especificidades oriundas dos nossos gostos, e por vezes, a amizade é apenas o ver-se no igual, naquele que é meu espelho apenas, aquele que ratifica minha fala, meu narcisismo, sentidos contrários, creio eu, à origem profunda e clássica do termo philia. Pois bem. Penso que é esse sentido profundo e raro de philia que se conseguiu construir na cidade do carvão, precisamente no curso de Direito da UNESC, ao longo de dez anos, e, a meu juízo, esse é um dos seus grandes legados que não pode escapar de nossa memória, mas deve ser partilhado com aqueles que porventura desejam, no futuro, entender essa história cheia de tramas e versões.
Se fosse possível traçar as causas históricas responsáveis pela definição deste perfil próprio do curso de Direito, sob a ótica da philia, a conjunção de alguns fatores me parece decisiva: 1) a fundação do curso de direito da UNESC se deu, desde sua raiz, sob a orientação claramente humanista, por pessoas que traziam, em sua formação pessoal, a marca de uma concepção de mundo e de universidade humanista, o que preparou o “solo” da comunidade que dali em diante se formou e afirmou; 2) sucessivas gestões do curso, ao longo de dez anos, também formadas, em sua maioria, por egressos do mestrado em direito da UFSC, conseguiram desenvolver, de uma forma democrática, a raiz humanista do curso na sua cotidianidade, no seu fazer prático do dia-a-dia; e, por fim 3) a incorporação sucessiva e gradativa de docentes de diversas matrizes de formação política, perfil acadêmico e profissionalizante, de várias cidades, aderindo-os, sem cooptação ou pressão, ao Projeto Político Pedagógico do curso, sem, contudo, desfigurar as especificidades pessoais de cada um. Obviamente, todo esse processo não se deu sem rusgas, nem foi linear. Tampouco a tese que aqui expresso pode ser lida como absoluta. O fato é que, de minha experiência pessoal, primeiro como aluno que militou no movimento estudantil, depois como docente universitário, poucos foram os espaços em que vi, sem idealismos, uma comunidade de professores, enfim, de amigos, no sentido clássico, ser constituída de maneira tão interessante. Uma alquimia fruto do labor dos tempos, forjada gradativamente por fatores racionais e práticos, ações planejadas, concepções pedagógicas e políticas claras, ao lado de uma gama de variáveis imponderáveis fizeram desse encontro de pessoas o que foi e tem sido o curso de direito da UNESC. O melhor resumo de sua história é o resumo dessas vidas entrecruzadas pelo riso, pelo choro, pelo trabalho e, principalmente, pelo prazer de estar-junto, algo raro no mundo de hoje.
Toda história, no fundo, é uma dentre muitas versões. A minha versão da história do curso de Direito da UNESC, que gostaria de um dia escrever e legar, é esta: a de pessoas, alunos e professores que, numa encruzilhada de suas existências, fizeram algo “bonito”, e só isso. Um bonito de uma “boniteza” que não se mede só com números, uma beleza que se sente de longe sua raridade. Muitos dos meus contemporâneos, que viveram o mesmo contexto de formação do curso de Direito da UNESC, hão de discordar dessa minha versão, achando-a fantasiosa, ufanista, idílica, “filosófica”, ridícula até. Mas, para mim, um dos atores dessa ficção, foi isso, esse elo cotidiano de amizade em torno de um projeto público, que fez quem somos nós até aqui, muito diferentes em tudo, mas iguais em sonhos, do mais pragmático ao mais poético, do mais cristão ao mais ateu, exercitando a palavra e o ato numa mesma comunidade. Quando, ao derredor, observo as dificuldades de instituições várias em construir grupos orgânicos, quando vejo a quase impossibilidade de as instituições atuais serem espelhos de nós mesmos, quando percebo que cada vez mais “o mundo da vida” não cabe mais nas organizações de forma plural e democrática, penso que nós, do curso de Direito, temos algo a dizer, uma memória a partilhar.
Como narrador parcial que sou, sinto não poder explicar melhor o que toda essa experiência significou e tem significado para mim objetivamente. Também não sei se esse é mesmo o melhor “retrato” do curso de Direito da UNESC. Posso dizer, apenas, que, até hoje, quando o telefone toca sobranceiro, quando algum engano pueril passa em minha frente, lembro ser possível que ali esteja disfarçado um enlace do destino, uma trama, um desatino, ou alguma “boniteza” dessas que só estão esperando o momento certo para crescer, o momento nebuloso e decisivo de nossas escolhas.


Vladimir de Carvalho Luz

domingo, 1 de junho de 2008

MANSIDÃO

- Ô compadre, você não imagina como é pra lá de boa aquela eguinha.
- Que nada compadre, estive olhando de longe, parecia que estava meio esgualepada.
Fazia frio naquela manhã. Estava grudado com dois grossos cobertores, meio dormindo, meio acordado, mas pude ouvir do quarto tudo que acontecia na sala.
- Estou lhe dizendo, aquela eguinha é dez. Só estou negociando porque vou ficar só com o gado no sítio.
- Mas compadre, a Zeti disse que a eguinha é do seu filho.
- É, mas ele não quer mais saber; tá estudando fora, vai ser "dotô", veio aqui esse final de semana pra descansar. Esse povo nosso, depois que sai pra cidade grande, volta com essa mania de acordar tarde. Ô tristeza...
Dormindo, mas ouvindo tudo. Aquela eguinha o pai tinha me dado no meu aniversário. O pai tinha essa mania de fazer negócio com tudo. O importante era negociar, passar horas de acertos, pouco importando o que era vendido. O mais curioso é que aquela eguinha era manca e cega de um olho, sequer pra passeio servia. O valor da minha eguinha, admito, era puramente sentimental.
- Pois então, você me dá aqueles dois terneiros e eu lhe entrego, por minha conta, a eguinha. Levo lá hoje mesmo.
- Sei não compadre... ela ta com a vacina em dia?
- Ta sim, ora se tá.
- Ela já deu cria?
- Que nada, é nova e bem donzela a bichinha.
- Sei... mas olhando daqui, ela parece ser meio arisca, né compadre?
- Nossa... se você não fala ia até esquecendo... o que aquela eguinha tem de melhor é a mansidão; né Zeti, aquela eguinha não é de uma mansidão de dar gosto?
Zeti, a atual esposa do pai, deveria estar na cozinha preparando o almoço. Não ouvi sua resposta.
- Quer ir lá ver? É tão mansa que pode até botar suas crianças pra passear sem medo.
- humm...
- Estou dizendo. Aí a Zeti que não me deixa mentir, né Zeti? É de uma mansidão...
Cinco minutos de silêncio. Era a hora do negócio ser fechado. Será que a égua manca, cega e arisca foi vendida? Tentei escutar. Só pude ouvir, depois de uma longa pausa, o chiado da bomba de chimarrão, aquele barulho que dá quando a água do mate já está no fim. Uma coisa era certa, acabando o mate, também acabava a conversa. Logo em seguida, escutei o motor de um carro, que aos poucos foi se afastando, enquanto também ouvia a voz de meu pai ao longe.

Lá se foi minha eguinha. Levantei, estiquei os braços como se quisesse alertar o corpo que já era hora. Olhei pela janela. Consegui ver, ao longe, o pai conversando com um homem que vestia uma bombacha surrada. Os gestos eram largos; pareciam que estavam discutindo. Foi assim que, num momento especial, pude ver com clareza o rosto do pai; ele já estava envelhecido pelas coisas da vida, coberto por uma barba branca. Um rosto que nunca esquecerei, com olhos de quem já viu de tudo nesse mundo, coisa do bem e do mal. Tinha uma pele queimada pelo sol do campo; testa larga de homem teimoso, que franzia quando preparava a erva do chimarrão no fim do dia. Ali estava, como numa tela de cinema, na luz do meio-dia, o rosto do meu pai; tinha também boca ativa, a mesma boca que teria dito certa vez meu nome com ternura, eu, "seu guri", carne de sua carne, sangue do seu sangue, e que resmungava pra Zeti na minha ausência, "que saudade de minhas crianças", a mesma boca que agora podia observar de longe, numa imagem que nunca esquecerei, soletrando, sílaba por sílaba:- M A N - S I – D Ã O compadre... M A N - S I - D Ã O

SOBRE MESTRES E PROFESSORES

Ser professor não significa ser mestre. Pode parecer mero jogo de palavras, mas entendo que há uma profunda diferença nos diversos sentidos que podem ser atribuídos a estas singelas denominações.

Professor instrui, o mestre provoca; o primeiro tem caminho de ofício a didática, o método, já o segundo trabalha com o incerto, a confusão e o espanto. Os professores nos cativam, os mestres nos marcam. Professores não são menos importantes que os mestres, ocorre que cada um tem um caminho, um chamado próprio, um risco e um desafio a seguir. Ser professor é difícil, depende do domínio de certas ferramentas e muita vivência no mundo da docência; ser mestre depende mais de atitude, de ações, decisões e exemplos vividos na própria carne.

Não se é professor apenas quem está diante de uma classe, tampouco é mestre quem tem títulos expostos nas paredes. Professores, num sentido amplo, são aqueles que nos ajudam no caminho, mestres são os que nos ajudam a abrir nossos caminhos. Nossa vida é cheia de mestres e professores, ainda que eu tenha visto mais professores ao longo da vida do que mestres.

O professor quer que o aluno aprenda, o mestre quer o discípulo seja mestre. A felicidade do professor é a aprendizagem, a do mestre é autonomia; professores são garantidores da tradição, mestres são destruidores de instituições. Nesse caminho curioso que chamamos vida, precisamos de ambos, de professores e de mestres. Na verdade, não se é exclusivamente mestre nem exclusivamente professor: isso muda com o tempo. A questão é estar preparado e alerta para qual deles a vida nos chama. Eis o desafio.

MANUAL HEDONISTA

Vem ser errante na vida
Deixe os planos debaixo da porta
Porque a sorte é mulher difícil, e o destino um cruel amigo
Aceite essas intensidades que a maioria abomina
Chore de dor, a mais profunda dor, com a contundência crua que a dor merece
Gema de prazer, faça a cama ranger, acorde os vizinhos, sinta do prazer tudo que é possível, sem culpa nem receio
De tudo o máximo possível: a água no deserto, o vinho no banquete, o cobertor no frio e o vento no calor
Vem, vem ser tolo como só você sabe ser
Deixem que falem da roupa, do peso, das espinhas, do jeito de andar
Ria de si, das dores de barriga, das insônias, das topadas, dos pensamentos que você nunca ousou dizer
Lembre-se, então
De raspar a panela de brigadeiro sem medo
E que há muito mais profundidade no ovo frito do que nas leis
E que os leões comerão gazelas enquanto houver savana
O sol se apagará um dia
Vírus tentarão raptar novas células
Bilhetes serão lidos
Carros colidirão
E toda a rotina se fará
E tudo será assim
Como um erro
Um encanto súbito
Um beijo tardio
Uma palavra repetida mil vezes
Hemoglobina rala
Pequenos cactos no sertão
E tudo será assim mesmo
Assim mesmo
Como você sempre sonhou
Uma placa de bronze
Trombetas e fogos
Um corpo nu
Silencio e a solidão
Pois sobrará de tudo isso apenas o desejo
Seu infiel parceiro para o último gole
O único capaz de ser você mesmo
Aquele que não te perdoará
Pois seu ser é agora
Agora: esse nada que nos consome.

17.04.2008
Vladimir Luz

sábado, 31 de maio de 2008

MEUS PECADOS PREDILETOS II - LUXÚRIA

Repousa a mão trêmula
Neste corpo moribundo
Que nada mais pode querer
Além do olhar noturno de sua alma
Prende, então, e de uma só vez
Essa coisa, esse vento, esse desatino
Cuja lavra de sangue marca tantos gritos insones
E como tudo que tem cheiro de morte
Deixe que o assombro seja, enfim, a prisão inconteste da vida
Quando, todavia, provar o último pedaço de mim
Deixe uma luz, anjo da luz: voz miúda, aço e suor
Abra, então, as narinas e sinta o cheiro acre da pele imunda e doce
A pele quente do diabo, do pobre diabo que te segueE saiba que dele nada se pode esperar
Nada mais que dor e prazer
É que o diabo, pobre diabo,
Sabe apenas estar junto a nós
Seres de amor e de morte, de lágrima e de riso
Pobre, pobre diabo
Condenado a habitar o lugar mais profundo que o amor e o perdão
Lugar chamado vida28.05.08