quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Fragmentos de Es (His) tórias da Assessoria Jurídica Popular na Aldeia Imbuhy


“Não sou eu quem me navega
Quem me navega é o mar”

(Timoneiro – Paulinho da Viola)


Marc Bloch já teria dito que a grande tentação do historiador é a genealogia. A fascinação pela origem, a gênese, o inicio de tudo. Essa tentação também é um grande desafio. Afinal, como identificar, numa cadeia de fatos complexos e caóticos, a raiz fática, o ponto causal onde tudo se desenrola e faz gerar certas conseqüências e não outras? Indo além: uma grande “história” seria o conjunto de invisíveis “estórias”? Como mensurar, no mosaico da vida humana, os detalhes invisíveis de centenas, milhares de fatos? Qual o lugar, nesta narrativa que chamamos “história”, do não-dito, daquilo que esta radicado na memória pessoal e em nada mais? De quantos silêncios se faz uma grande história? Foi lá no Imbuhy que este tema me veio à mente.

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Seu Navega é um artesão de mão cheia. Não havia canoa que passasse pelo Imbuhy que ele não desse jeito. Navega tem aquelas mãos raras, olhar apurado dos fazedores de coisas. Há pessoas, como Seu Navega, que nascem com essa inata manualidade-do-mundo. Uma habilidade concreta, inserta entre a idéia e a concretude. De uma peça bruta de madeira ele faz nascer uma escultura; seu dom é o de consertar, o de construir, o de (des)velar. Foi Ailton, seu filho, quem me disse que seu pai (Navega) foi ampliando e reformando sua casa aos pouquinhos. Como era impedido pelos militares de entrar com material, Navega ia e voltava várias vezes, de bicicleta, trazendo o material de construção em pequenas partes para levantar a laje da casa. Ailton lembra vivamente o esforço do seu pai e de sua família, na calada da noite, unidos, levantando e ampliando partes da casa que ainda hoje residem na Aldeia Imbuhy.
Foi assim que, numa reunião com os moradores do Imbuhy, pude fitar Ailton diretamente nos olhos, e ele me disse mais ou menos assim: “é por essa casa, por este esforço de meu pai que eu luto pra ficar aqui”. Nenhum arrazoado jurídico poderia ser mais convincente, para mim, do que o silêncio que se seguiu após esta confidência.
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Quando tudo começou? Seria a partir da primeira bandeira do Brasil bordada pela Dona Iaiá? Ou a genealogia estaria no tempo em que as canoas partiam livres rumo mar adentro, e, como diz Jorginho, “se pegava os peixes de mão”? Ou a gênese estaria refletida em centenas de estórias de amor e de perda que se sucederam? Casas demolidas são apenas fragmentos de estórias? Ou tudo já vem desde quando o último Tamoio pereceu aqui por perto onde hoje há fumaça e asfalto?

Vai saber...

Por enquanto há motivos para se pensar nessas estórias inauditas que vamos colhendo aqui e ali. Afinal, Assessoria Popular não seria outra coisa, senão apurar os ouvidos e a sensibilidade? Relatos, silêncios e gestos que são como as esculturas de Seu Navega, canoas sem destino neste marzão de sentido. Talvez Warat concordasse com isso: a origem é sempre afeto.


09 de setembro de 2015
Vladimir de Carvalho Luz



Foto de Vladimir Luz. Visão frontal da praia da Aldeia Imbuhy - Niterói (RJ)