quinta-feira, 15 de novembro de 2012

MEU PAI

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Minha Irmã Rai me contou. Era cedinho, eu estava no berço. Meu pai chegou silencioso e apressado. Ele pegou umas roupas e se despediu dela e de mim com um afago. Rai lembra que dois homens estavam fora de casa, esperando. Dali meu pai seguiu direto para o quartel. Rai, apesar de muito jovem, nunca esqueceu essa cena: meu pai sendo preso pelos agentes do regime militar de 1964.

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Minha avó Izabel chamava seu filho, Raimundo Batista da Luz, carinhosamente de “mundim”. Orgulhava-se do filho que tinha duas formaturas (Administração e História). De minha avó ouvi a estória de que ela teria estrategicamente enterrado os livros de “Mundim”, livros vermelhos. Naquele tempo livros eram perigosos. Os amigos o chamavam, e até hoje chamam, carinhosamente de Batistinha. A política, os amigos, a vida vivida intensamente sempre conduziu meu pai. Lembro dos tempos de APLB, dos debates da CUT, da formação do PT. Logo após a abertura, nas primeiras eleições para vereador, tenho vivamente na memória a foto de meu pai na TV, com um número (de sua candidatura). Isso era a propaganda política da época. Minha mãe guarda até hoje uma foto publicada na capa do Jornal A TARDE em que estou eu e meu pai, no Campo Grande, num dos primeiros comícios de Lula após a fundação do PT.

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Atualmente meu pai mora em Pituaçu na cidade de Salvador, onde leva uma vida simples. Mas, qual característica de Batistinha seria mais marcante para mim? Quando falamos de nossos pais, há uma tentadora tendência de se fazer apologias, ou, contrariamente, por vezes, consciente ou inconscientemente, cometemos injustiças e distorções. Atento a estes riscos, de meu pai, esse “espírito livre”, desorganizado para as coisas materiais, ex-preso político, militante, homem alheio às demandas da “vida prática”, há um componente muito importante que hoje percebo claramente. Aos olhos da sociedade atual, para a qual uma pessoa vale pelo carro ou pela roupa de marca que usa, ou mesmo pela esperteza de pautar sua vida em estratégias estritamente pragmáticas, qual seria o legado de Batistinha? A resposta para tal indagação, que já se enunciava de forma intuitiva, veio recentemente.

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Contardo Calligaris, num Café Filosófico em que se discutia “a crise do macho”, teve que responder uma pergunta feita por uma ouvinte queixosa dos homens. Antes, Contardo sustentava a hipótese de que há, no imaginário masculino, duas questões centrais: uma, a relação complexa entre devaneio e mundo concreto, que impulsiona a psique masculina sempre rumo ao suprimento de expectativas (maternas e das mulheres em geral), que são de difícil realização, o que gera uma sedução pela quebra do cotidiano, o desejo constante pelo alhures. Outra característica, ligada à primeira, refere-se ao heroísmo da guerra como elemento determinante do ideal masculino. Nessa perspectiva, o desafio da morte que a guerra representa seria a marca da mestria masculina. Há também o movimento de despedida que marca a ida para a Guerra. Agonismo e altruísmo estariam no cerne dessa marca masculina, pautada na assunção e erotização do risco, no qual sobreviver (parte do concreto cotidiano) não é mais importante do que viver. Ao final da exposição, a referida mulher presente na plateia disse, indignada, mais ou menos o seguinte: os homens são preguiçosos, covardes. Guerra é fácil, heroísmo mesmo é a vida real, concreta, ir ao supermercado, pagar contas. Contardo sorriu. Em seguida, respondeu, em síntese:



“Vou lhe responder de um ponto de vista masculino porque é o meu ... concordo com você que é preciso de muita coragem para encarar a vida cotidiana ... é preciso de uma coragem de um tipo diferente ... o problema é que a coragem do devaneio, por exemplo, é também de considerar que a coisa mais concreta que a gente tem, a vida, não é necessariamente um valor supremo...e tem momentos nos quais é muito bom que seja assim... de novo só posso pensar nos termos que eu verdadeiramente aprendi.. nos termos da vida que aprendi com os meus pais...o meu pai era profundamente inepto do ponto de vista da vida concreta.. desse ponto de vista era um macho perfeito ... não tinha nenhuma gestão da casa ... e não sabia assinar um cheque, contrariamente a mim e meu irmão ... não sabia nem fritar um ovo... mas se não fosse pelo tipo de coragem dele talvez a Europa de hoje seria uma Europa pós-hitlerista ou nazista... essa foi a coragem dele. Precisava que alguém dissesse não, tem coisas pelas quais a gente, o filho da gente vale a pena morrer... porque não vale a pena viver dobrando a cabeça ...eu acho isso tão importante quanto... ”

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Pois bem. Mais que concordar ou não com a tese exposta por Contardo Galligaris, do jogo difuso das expectativas femininas moldando as masculinas, e todas elas sendo modificadas ao longo do tempo, algo importante emerge de minha reflexão pessoal.

A vida de meu pai foi e é a síntese de um heroísmo masculino do alhures, que hoje representa algo distante das vidas cotidianas. Não foi melhor nem pior que outras, tampouco exemplo de perfeição idealista. Longe disso. Tudo teve (e tem) um preço. Batistinha talvez não saiba, mas ele me mostrou que existem coisas pelas quais efetivamente vale a pena morrer. Se não se sabe disso, nenhuma vida, por mais confortável que seja do ponto de vista material, vale a pena de ser vivida.

15.11.2012

Vladimir Luz