sexta-feira, 5 de março de 2021

Dor e glória




Freud dizia que uma das causas da infelicidade humana está na degradação do corpo.  O corpo é uma das testemunhas implacáveis  do tempo. No corpo, as marcas da finitude se mostram mais visíveis. A velhice, assim, faz-se carne. Mas mesmo a concretude da velhice vem acompanhada de uma “illusio”. O velho, ao se olhar no espelho, sabe que aquele que observa está marcado pela ilusão do tempo, cujo reflexo é somente uma parte de si, ao passo em que a memória teima em ver outro, um estranho-familiar. Afinal, ante a ilusão especular do tempo, surge a pergunta:  quem é este velho que me olha?


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Salvador, personagem autobiográfico de Antonio Banderas em “Dor e Glória”, tem no corpo os sinais do tempo. Dores crônicas, cabelos brancos. Rugas que roubaram o viço e o brilho de antes. A máquina de tendões e músculos não mais obedecia os comandos da mente com precisão. Mas aquele velho corpo que se tornou Salvador também estava impregnado de imagens de si. Um Salvador criança, imagético, habitava também aquela velha carcaça. Salvador percebeu que, na velhice, ficava mais evidente que somos parte de nossas memórias. Antes, na juventude, a instantaneidade da vida e o silêncio das dores do corpo faziam com que as memórias tivessem um valor menos evidente em nossa autoimagem.  Mas com o tempo essa imago subjetiva muda.  Salvador passou a perceber que parte fundamental de si sempre foi aquele menino que ouvia extasiado sua mãe cantar enquanto lavava roupa no rio; parte de si sempre esteve na memória da casa subterrânea que povoava as imagens de sua infância. O jovem Salvador, de fato, também habitava aquele velho corpo de escritor.


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Por ocasião de seu aniversário, Caetano Veloso disse em seu Twitter: “Eu tenho muita coisa dos meus 14 anos. E, claro, da minha infância. As coisas mais importantes acontecem quando somos muito jovens”. Talvez seja essa a dinâmica geral das coisas. Vai saber. Não que coisas importantes não possam ocorrer em qualquer momento da vida, mas que esta imago da juventude se forma nos momentos decisivos de estruturação dos nossos lugares no mundo. As marcas da juventude - que em sua imagem especular a cultura antagoniza com a degeneração do corpo velho - passam a ter muita significação na velhice. Nesse sentido, Diana Corso e Mário Corso compreendem que a adolescência - essa recente criação burguesa - seja um momento decisivo na formação de nossa imago. Por isso, sempre seremos, em parte, aqueles jovens desejantes que guardamos na memória, ainda que o espelho insista em negar. Na velhice isso tudo fica muito evidente. A sabedoria da velhice, talvez,  passe pela possibilidade de olhar com afeição este outro que sempre fomos nós. A dor da velhice, então, pode ser mais que a dor do corpo em declínio. Pode ser o sofrimento dessa dupla imagem que nos acompanha; a dor não referente à impossibilidade de voltar a ter  o corpo jovem, mas, também, a sensação  de ter traído aqueles desejos fundamentais; desejos que, com erros e acertos, sempre foram a parte mais autêntica de nós mesmos.


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O velho Salvador, depois de anos, tinha resolvido encenar mais uma peça sua. Mas sua obra deveria ser assinada por um pseudônimo. Tinha receio de identificar pessoas e fatos, afinal, tratava-se de uma obra confessional.


Talvez aqui tenha se equivocado o velho Salvador. Toda arte é confessional. Mas não no sentido pessoal, imediato. Seria Fernando Pessoa mais Alberto Caeiro ou Ricardo Reis? Ou há mais do Sr. K em mim do que em Kafka ? Na arte podemos nos ver em muitos. Aí está sua estranha magia, que nos acompanha desde as pinturas de Lascaux. 


“Dor e glória”, portanto, é um filme confessional. Por isso mesmo ele vai além das memórias da juventude de Antonio Banderas.  É um filme sobre esse que olhamos quando estamos diante do espelho do tempo; esse reflexo de memória, desejo e carne que somos nós.