domingo, 24 de abril de 2011

CRIAÇÃO




Após anos de trabalho, imensos conflitos pessoais, Charles deixa os manuscritos na mesa e diz: “Você decide [...] mas leia primeiro”. Emma, esposa dedicada e religiosa, vara a noite lendo o trabalho que consumiu seu marido e sua família por longos anos. De manhã, para surpresa de Charles, Emma entrega os manuscritos embalados e endereçados para a editora. Sua voz, grave, não tem rancor: “finalmente você me tornou sua cúmplice...”. Segue a cena final. No fundo de uma carroça simples, seguia o embrulho enigmático; seria mais uma encomenda como qualquer outra, se ali não estivesse o trabalho que modificaria definitivamente a forma de entender a vida. No fundo de uma carroça, saindo de um vilarejo qualquer, seguia mais que uma obra, mas a síntese do desafio humano de compreender a si próprio.

Há quem pense que o filme “Criação”(Creation), de 2009, dirigido por Jon Amiel trata da obra “A origem das espécies”, publicada inicialmente em 1859, de Charles Darwin. Isso é uma meia verdade. O próprio filme induz a esse engano, ao anunciar que tratará especificamente da história de como esse livro foi escrito. Penso que o filme Creation é mais do que isso. Minha análise é, obviamente, parcial e passional. Faço-a, inclusive, após verificar inúmeras resenhas sobre o filme de Amiel, as quais, em sua maioria, o que se aborda é apenas parte do que é relevante, pois estas desconsideram, grosso modo, o que é principal numa obra de arte, ou seja: não a trama racional, mas a experiência estética que ela é capaz de produzir.

O foco do filme é a vida pessoal de Charles Darwin (Paul Bettany), exatamente quando este decide reunir, compilar e sintetizar anotações feitas ao longo de anos de trabalho, os quais resultaram na obra “A origem das espécies”. O roteiro, em face desse argumento central, consolida-se a partir de flashs, reminiscências de Charles sobre suas viagens, os momentos específicos da vida do naturalista, como seus problemas de saúde e conflitos com amigos. As cenas, todas primorosas, mostram um homem inglês do seu tempo, vivendo intensos conflitos familiares, sofrendo com as desventuras da vida. O cerne artístico do filme, portanto, gira em torno das relações de Charles com sua família, em especial sua relação com a esposa Emma (Jennifer Connelly), e sua filha Annie (Martha West). Todas as cenas em que se insinuam uma explicação racional da seleção natural, ou nas quais ficam mais patentes os conflitos entre fé e razão, a base artística, o nascedouro estético são justamente os eventos familiares que se desdobram: a morte prematura de Annie, o distanciamento de Charles dos seus outros filhos, o amor de Emma impactado pela dor, pela culpa e convicções religiosas. Toda essa opção estética do enredo retira o peso simbólico que projetamos na aura do gênio, da teoria como algo fora de nossas vicissitudes humanas. Charles, acima de tudo, é um pai, um marido, um homem que sente dores; um homem que, ao tentar se equilibrar no fio frágil da vida, quase se deixou cair com o peso das desventuras.

No fundo de uma carroça singela seguia uma encomenda enigmática. O filme Creation trata dessa encomenda, é bem verdade. Mas a cena mais importante, a meu ver, é aquela que retrata o reencontro de Charles e Emma após a morte de Annie. Culpa, medo, tudo se sublima fortemente, e Emma diz: “mesmo sabendo tudo que sei agora, eu me casaria com você de novo amanhã”. O que faz da arte algo tão relevante quanto a ciência é isso: o seu poder misterioso de nos tornar participes de algo. Como disse no inicio, penso que toda resenha que destaca como ponto negativo do filme Creation esse lado emotivo e pessoal falhou feio. O filme é uma ode à sensibilidade, ao amor, à desventura e, também, aos desafios do conhecimento. Não perceber isso é não ver o ponto essencial: a ciência e a vida se unem no ponto cego em que o clichê e o absurdo se manifestam pela razão ou pela sensibilidade. Nossas vidas flutuam invariavelmente nesse ponto cego, por isso temos arte e ciência.

Fui, portanto, passional e parcial na minha breve análise. Pode até parecer ridículo, démodé, destacar o que destaquei como ponto alto do filme Creation, mas este filme me fez ir além da minha admiração racional pelo livro e pela teoria exposta em “A origem das espécies”. Creation me fez mais do que entender uma teoria; fez aquilo que toda grande arte deve fazer: não produzir verdades, mas gerar cúmplices.

Vladimir Luz (24/04/2011)

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