quinta-feira, 5 de junho de 2008

O curso de Direito da UNESC

Não será preciso, agora, medir palavras, ter pruridos, tampouco iludir-se em ser imparcial; necessário se faz, portanto, ir direto ao ponto: algo de muito bonito aconteceu na Cidade de Criciúma, há pouco mais de dez anos, quando ali se formou um singelo curso de graduação em direito na Universidade do Extremo Sul Catarinense.
Dentre muitos termos, a palavra “bonito”, mesmo podendo invocar um tom jocoso, ridículo, precário ou mesmo démodé, é a expressão mais honesta da qual me valho preliminarmente para sintetizar uma experiência peculiar de atividade universitária; uma experiência de convívio humano que raramente acontece e, como tudo que é humanamente “bonito”, é igualmente frágil e tem sempre como horizonte possível o olvido decorrente do silêncio das gerações que lhe sucedem. É sobre este algo “bonito”, que foi e é muito mais que a história de um curso universitário no interior de Santa Catarina, que eu busco, aqui, em breves linhas, deixar um testemunho com o olhar de quem pôde vivenciar seus êxitos, seus fracassos e seus desafios. Diante de tantas coisas a relatar e a gravar na memória dos que virão, destacarei – com o meu olhar míope e parcial – apenas um aspecto fundamental do curso de direito da UNESC, algo que, para além da estrutura acadêmica e curricular, das rotinas procedimentais ou mesmo do projeto pedagógico formal, pode ser entendido como a sua marca principal, seu elemento fundador, ou seja, aquilo que os gregos denominavam de philia.
Para mim, tudo começou por um engano: “Alô, queria falar com ‘fulano’, disse o então coordenador adjunto de curso de direito da UNESC à época, Carlos Magno. “Não, essa pessoa não mora aqui”. Disse-lhe, então, que era “o Vladimir”. Como num estalido, após breve silencio, o Magno lembrou que também precisava falar comigo, que meu nome teria sido mencionado por uma amiga para lecionar, caso houvesse uma necessidade urgente. No final das contas, aquele engano teria dado certo, pois de fato havia a urgência em se conseguir um professor de IED (Introdução ao Estudo do Direito). Sem saber onde ficava Criciúma, norte, sul, leste ou oeste, lá fui eu.
Em 2001, logo que ingressei na UNESC, a idéia de se construir um curso de direito crítico e humanista encravado na cidade de Criciúma, inspirado talvez por influência do exemplo histórico da UFSC, apesar de claramente discutido e delineado, encontrava inúmeras resistências. Havia os que pensavam, e ainda pensam, alunos e professores, que o mercado deveria dirigir e determinar os objetivos da academia, e, no campo do direito, a formação técnica e dogmática deveria ser o tom, a linha do curso. Premidos por essas tensões, lembro-me de um slogan surgido na época: o curso de direito tem muitos filósofos e nenhum advogado. Muitas foram as disputas ao longo desses dez anos, rusgas internas e externas, acirradas por um rico ambiente universitário marcado pelo voto universal, características que, por si só, mereceriam outro relato específico. Tudo isso ficará, creio eu, devidamente registrado. Para mim, neste momento, importa saber como este projeto, pressionado por tantas forças contrárias, conseguiu resistir e alcançar notórios êxitos, ou seja, o que, no fundo, lhe deu efetivo suporte?
A philia, para o gregos pós-socráticos, comumente traduzida por “amizade”, era o principal vínculo que tornava possível a vida comum, a vida da polis, a vida humana, que nada mais era, para os helenos, senão o convívio entre os diferentes. Os gregos antigos, nossos “pais fundadores”, bem sabiam que a philia era justamente aquilo que possibilitava, para além de uma afectio pessoal, o espaço político da vida em comum, sendo ela o campo de intersecção, o hiato preciso em que se constituía o próprio espaço aberto da convivência, da vida que não é puramente mais algo pessoal e doméstico (oikos), mas uma vida partilhadamente projetada: uma comunidade. É realmente difícil, para nós, homens e mulheres do presente, entender exatamente o sentido pleno e político do arcaico termo philia. Para nós, ocidentais do século XXI, grosso modo, a amizade é uma expressão meramente individual de se relacionar, um elemento de nossas relações privadas, um círculo das especificidades oriundas dos nossos gostos, e por vezes, a amizade é apenas o ver-se no igual, naquele que é meu espelho apenas, aquele que ratifica minha fala, meu narcisismo, sentidos contrários, creio eu, à origem profunda e clássica do termo philia. Pois bem. Penso que é esse sentido profundo e raro de philia que se conseguiu construir na cidade do carvão, precisamente no curso de Direito da UNESC, ao longo de dez anos, e, a meu juízo, esse é um dos seus grandes legados que não pode escapar de nossa memória, mas deve ser partilhado com aqueles que porventura desejam, no futuro, entender essa história cheia de tramas e versões.
Se fosse possível traçar as causas históricas responsáveis pela definição deste perfil próprio do curso de Direito, sob a ótica da philia, a conjunção de alguns fatores me parece decisiva: 1) a fundação do curso de direito da UNESC se deu, desde sua raiz, sob a orientação claramente humanista, por pessoas que traziam, em sua formação pessoal, a marca de uma concepção de mundo e de universidade humanista, o que preparou o “solo” da comunidade que dali em diante se formou e afirmou; 2) sucessivas gestões do curso, ao longo de dez anos, também formadas, em sua maioria, por egressos do mestrado em direito da UFSC, conseguiram desenvolver, de uma forma democrática, a raiz humanista do curso na sua cotidianidade, no seu fazer prático do dia-a-dia; e, por fim 3) a incorporação sucessiva e gradativa de docentes de diversas matrizes de formação política, perfil acadêmico e profissionalizante, de várias cidades, aderindo-os, sem cooptação ou pressão, ao Projeto Político Pedagógico do curso, sem, contudo, desfigurar as especificidades pessoais de cada um. Obviamente, todo esse processo não se deu sem rusgas, nem foi linear. Tampouco a tese que aqui expresso pode ser lida como absoluta. O fato é que, de minha experiência pessoal, primeiro como aluno que militou no movimento estudantil, depois como docente universitário, poucos foram os espaços em que vi, sem idealismos, uma comunidade de professores, enfim, de amigos, no sentido clássico, ser constituída de maneira tão interessante. Uma alquimia fruto do labor dos tempos, forjada gradativamente por fatores racionais e práticos, ações planejadas, concepções pedagógicas e políticas claras, ao lado de uma gama de variáveis imponderáveis fizeram desse encontro de pessoas o que foi e tem sido o curso de direito da UNESC. O melhor resumo de sua história é o resumo dessas vidas entrecruzadas pelo riso, pelo choro, pelo trabalho e, principalmente, pelo prazer de estar-junto, algo raro no mundo de hoje.
Toda história, no fundo, é uma dentre muitas versões. A minha versão da história do curso de Direito da UNESC, que gostaria de um dia escrever e legar, é esta: a de pessoas, alunos e professores que, numa encruzilhada de suas existências, fizeram algo “bonito”, e só isso. Um bonito de uma “boniteza” que não se mede só com números, uma beleza que se sente de longe sua raridade. Muitos dos meus contemporâneos, que viveram o mesmo contexto de formação do curso de Direito da UNESC, hão de discordar dessa minha versão, achando-a fantasiosa, ufanista, idílica, “filosófica”, ridícula até. Mas, para mim, um dos atores dessa ficção, foi isso, esse elo cotidiano de amizade em torno de um projeto público, que fez quem somos nós até aqui, muito diferentes em tudo, mas iguais em sonhos, do mais pragmático ao mais poético, do mais cristão ao mais ateu, exercitando a palavra e o ato numa mesma comunidade. Quando, ao derredor, observo as dificuldades de instituições várias em construir grupos orgânicos, quando vejo a quase impossibilidade de as instituições atuais serem espelhos de nós mesmos, quando percebo que cada vez mais “o mundo da vida” não cabe mais nas organizações de forma plural e democrática, penso que nós, do curso de Direito, temos algo a dizer, uma memória a partilhar.
Como narrador parcial que sou, sinto não poder explicar melhor o que toda essa experiência significou e tem significado para mim objetivamente. Também não sei se esse é mesmo o melhor “retrato” do curso de Direito da UNESC. Posso dizer, apenas, que, até hoje, quando o telefone toca sobranceiro, quando algum engano pueril passa em minha frente, lembro ser possível que ali esteja disfarçado um enlace do destino, uma trama, um desatino, ou alguma “boniteza” dessas que só estão esperando o momento certo para crescer, o momento nebuloso e decisivo de nossas escolhas.


Vladimir de Carvalho Luz

Um comentário:

  1. Como diria, a Ilustríssima Sra. Ana Luz, foi "aí que ele bateu asas de pégasus e foi iluminar outros lugares, outros seres, outros sonhos, outros amores, na caçada ferrenha de suas utopias..."
    Parabéns pelo Blog, Orientador!

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