domingo, 1 de junho de 2008

MANSIDÃO

- Ô compadre, você não imagina como é pra lá de boa aquela eguinha.
- Que nada compadre, estive olhando de longe, parecia que estava meio esgualepada.
Fazia frio naquela manhã. Estava grudado com dois grossos cobertores, meio dormindo, meio acordado, mas pude ouvir do quarto tudo que acontecia na sala.
- Estou lhe dizendo, aquela eguinha é dez. Só estou negociando porque vou ficar só com o gado no sítio.
- Mas compadre, a Zeti disse que a eguinha é do seu filho.
- É, mas ele não quer mais saber; tá estudando fora, vai ser "dotô", veio aqui esse final de semana pra descansar. Esse povo nosso, depois que sai pra cidade grande, volta com essa mania de acordar tarde. Ô tristeza...
Dormindo, mas ouvindo tudo. Aquela eguinha o pai tinha me dado no meu aniversário. O pai tinha essa mania de fazer negócio com tudo. O importante era negociar, passar horas de acertos, pouco importando o que era vendido. O mais curioso é que aquela eguinha era manca e cega de um olho, sequer pra passeio servia. O valor da minha eguinha, admito, era puramente sentimental.
- Pois então, você me dá aqueles dois terneiros e eu lhe entrego, por minha conta, a eguinha. Levo lá hoje mesmo.
- Sei não compadre... ela ta com a vacina em dia?
- Ta sim, ora se tá.
- Ela já deu cria?
- Que nada, é nova e bem donzela a bichinha.
- Sei... mas olhando daqui, ela parece ser meio arisca, né compadre?
- Nossa... se você não fala ia até esquecendo... o que aquela eguinha tem de melhor é a mansidão; né Zeti, aquela eguinha não é de uma mansidão de dar gosto?
Zeti, a atual esposa do pai, deveria estar na cozinha preparando o almoço. Não ouvi sua resposta.
- Quer ir lá ver? É tão mansa que pode até botar suas crianças pra passear sem medo.
- humm...
- Estou dizendo. Aí a Zeti que não me deixa mentir, né Zeti? É de uma mansidão...
Cinco minutos de silêncio. Era a hora do negócio ser fechado. Será que a égua manca, cega e arisca foi vendida? Tentei escutar. Só pude ouvir, depois de uma longa pausa, o chiado da bomba de chimarrão, aquele barulho que dá quando a água do mate já está no fim. Uma coisa era certa, acabando o mate, também acabava a conversa. Logo em seguida, escutei o motor de um carro, que aos poucos foi se afastando, enquanto também ouvia a voz de meu pai ao longe.

Lá se foi minha eguinha. Levantei, estiquei os braços como se quisesse alertar o corpo que já era hora. Olhei pela janela. Consegui ver, ao longe, o pai conversando com um homem que vestia uma bombacha surrada. Os gestos eram largos; pareciam que estavam discutindo. Foi assim que, num momento especial, pude ver com clareza o rosto do pai; ele já estava envelhecido pelas coisas da vida, coberto por uma barba branca. Um rosto que nunca esquecerei, com olhos de quem já viu de tudo nesse mundo, coisa do bem e do mal. Tinha uma pele queimada pelo sol do campo; testa larga de homem teimoso, que franzia quando preparava a erva do chimarrão no fim do dia. Ali estava, como numa tela de cinema, na luz do meio-dia, o rosto do meu pai; tinha também boca ativa, a mesma boca que teria dito certa vez meu nome com ternura, eu, "seu guri", carne de sua carne, sangue do seu sangue, e que resmungava pra Zeti na minha ausência, "que saudade de minhas crianças", a mesma boca que agora podia observar de longe, numa imagem que nunca esquecerei, soletrando, sílaba por sílaba:- M A N - S I – D Ã O compadre... M A N - S I - D Ã O

3 comentários:

  1. Cadê o texto do Café?
    Café! Café! Café!
    Beijos
    Vivi

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  2. Parabéns pelo blog, professor.
    Vou visitá-lo com freqüência.
    Abraço,
    Carlos

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