sexta-feira, 11 de julho de 2008

ALGEMAS E BRIOCHE

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Vladimir de Carvalho Luz

O pitoresco episódio protagonizado por Maria Antonieta nas vésperas da revolução francesa (1789) lembrou-me a forma simbólica como grande parte da elite jurídica nacional insiste em se comportar em relação a determinados fatos de impacto geral, notadamente no campo penal. Refiro-me especialmente à declaração recente do presidente do STF acerca de certos excessos relativos às prisões realizadas pela Policia Federal de personalidades como Naji Nahas, Celso Pitta, Daniel Dantas, dentre outros. No caso específico, com ar grave, o presidente da mais alta Corte do Brasil manifestou sua preocupação com o uso abusivo de algemas, o que seria incompatível com um Estado Democrático de Direito. Tal declaração, em que pese ser correta em seu sentido jurídico-formal, revela o padrão clássico de “insensibilidade social” travestida sob a forma ingênua de uma indignação jurídica ad hoc.

Reza a história (ou a lenda) que, ao saber que uma turba faminta clamava por pão em frente do Palácio de Versalhes, Maria Antonieta teria dito “Se o povo está com fome e não tem pão, que coma brioche". A pitoresca frase da esposa do rei Luís XVI sempre é usada como um exemplo clássico de uma espécie de “autismo social” típico das elites, incapazes (conscientemente ou não) de ver as contradições reais que a cercam. Afinal, pensando formalmente, é correto afirmar que brioches, assim como pão, matam a fome. Talvez o povo faminto – esse pequeno detalhe, ao qual não se devem muitas satisfações – tenha entendido mais do que o sentido formal (correto) da frase de Maria Antonieta, mas o seu sentido simbólico. Tal padrão parece ser universal e muito comum em contextos em que a elite se acha ainda confortável no seu mundo de vidro, ou de grades e gabinetes, como no Brasil.

Esse desprezo, esse alheamento e esse descaso que o discurso da elite revela em face das tensões da vida cotidiana cabem bem na boca dos juristas, acostumados, via de regra, a separar o formal do material, a vida da lei, a legitimidade da legalidade, tudo em nome de uma pretensa verdade (mascara tosca de ideologia) ou de uma autoridade quase sacra. O ponto é simples: o que significa, simbolicamente, a indignação pública e específica do presidente do STF no episódio das mencionadas prisões? Sejamos francos. O que deveriam pensar (tal qual a turba de Versalhes) os milhares de brasileiros e brasileiras cotidianamente submetidos às algemas, à tortura (Tropa de Elite?) e ao descaso das autoridades públicas ? Como deveriam interpretar essa frase os milhares de “cidadãos não-banqueiros ou não-políticos, que presumidamente são inocentes, mas ficam algemados nos salões de júri? Que compreensão teriam – se lhes é lícito compreender o que enuncia o oráculo dos doutos, aqueles para os quais o Estado Democrático de Direito sequer foi oferecido como ilusão? Dirão alguns: trata-se de um pronunciamento sobre um caso específico. A dúvida que fica, porém, é por que os outros casos (centenas quiçá) de ação brutal e excessiva do direito penal, como a criminalização dos movimentos sociais, só para citar um exemplo, não está na fala costumeira desses “mandatários” do Estado Democrático de Direito?
Uma ressalva final: acredito que ter o mínimo de sensibilidade social em uma sociedade cindida em extremas desigualdades reais, como o Brasil, não significa, notadamente no mundo dominado pela mídia, “jogar para a torcida”, tampouco exercer a fala “populista”. Não. Mas não se pode mais deixar de notar o sentido simbólico dessa falas gerais das elites, surgidas em situações pontuais, apoiadas pelo corolário de uma igualdade formal e de uma neutralidade que nem mesmo o ideário liberal clássico suportaria, tamanha a sua “ingenuidade”. Num mundo real, e não de ficções jurídicas, não é lícito subtender que a crítica pública das algemas, feita pelo bem-intencionado presidente do STF, era dirigida a quaisquer algemas e não àquelas que prendiam especialmente os nominados envolvidos (cidadãos iguais a todos).
Não sei se a elite brasileira, notadamente a jurídica, algum dia deixará de falar como se estivesse num mundo de fantasias. O clamor pela injustiça horrenda das algemas em cidadãos tão exemplares, em contraste com os outros tantos (nem sempre citados) que furtam melancias, é apenas um “ato falho”. Os juristas em geral, cercados por suas boas razões, verdades e ingenuidades, adoram oferecer ao povo o “brioche” sofisticado de suas decisões, não desconfiando que talvez o povo, essa coisa abstrata e distante, sabe bem qual a diferença real entre algemas, pão e brioche. De alguma maneira, a historia demonstra que as elites dominantes custam a entender o efeito de suas “insensibilidades”. Maria Antonieta e Luís XVI entenderam tarde demais.

2 comentários:

  1. Belo texto!
    Até quando teremos que aguentar esse
    Brasil MALANDRO?

    Governado por MALANDROS HIPÓCRITAS!

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  2. huahuauhahuahua
    gostei muito do texto.
    fico pensando se é ele se refere a esse mundo de fantasia por alienação ou cara-de-pau. Acho que um pouco dos dois...

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