"O mundo é uma obra de arte que engendra a si própria'
(Nietzsche, Vontade de Potência)
***
Não
era uma questão de opção: ele estava destinado à sensibilidade. Deitado em sua cama
podia ver o mar no teto com todo aquele azul intenso e infinito. Ondas, ondas. Da
sacada de seu apartamento, o Coliseu se abria aos olhos como um quadro. Outrora
homens ali morreram e se divertiram, sangue e risos foram gravados em cada tijolo
daquelas colunas magistrais. Mas sempre ela, sempre ela, a sensibilidade. Festas, riso,
dança, sexo, rotina, e sempre ela a espreitar, a sensibilidade. Ele era assim
não por simples decisão, era seu mandato ser um observador metafísico, mundano,
irônico e incrédulo dessas coisas intensas e ao mesmo tempo ridículas que
somos.
No meio disso tudo, por certo, havia uma busca inaudita. Quem saberá? Quem poderá ver a grande beleza? Mas
o fato mais latente é que havia uma profundidade imperceptível em toda
superfície, e ele bem sabia disso. Fenomenologia, diriam os doutos. Cada detalhe, como as reentrâncias e cores do mosaico da Via Triumphalis, cada gesto
humano, por mais fútil e banal, espancava-lhe a sensibilidade inata e bruta. Era como não
se lhe fosse dado o direito de ignorar que, mesmo com toda sua grandiosidade, há
frestas no Coliseu. As ruínas são os corpos esquecidos do novo. O novo esta nas
fissuras. Seres humanos participam compulsoriamente desse enredo. Basta ver o que se gravou em cavernas, papiros, pergaminhos e blogs. Pobres animais falantes, irremediavelmente jogados na consciência do constante vir-a-ser, que buscam, inconscientemente, gravar algo sólido e imemorial no presente fugidio. Tudo então se resumiria – essa longa história depois do verbo –, a frestas e rugas, pedra e carne. No pó das ruínas sim, ali havia uma essência, séculos de ontologia: início e fim. Por
tudo isso, amiúde ele percebia que em cada gesto humano há uma clareira, um
enclave, um lugar cinza entre o velho e o novo, um campo agônico entre o grandioso
e o fútil. Por isso, então, temos a arte, essa testemunha parida das coisas que só a
sensibilidade captura. E ele olhava tudo isso com aquele olhar de quem já viu
muito, viveu muito. E mesmo com tanto, escrevera apenas um livro. Para que
mais? Para que? O final já não é por demais sabido desde o início? Festas,
riso, dança, sexo, rotina e ela, sempre ela, a sensibilidade; aquela que não o
deixaria nunca, mesmo agora quando tudo já tinha o cheiro ácido do tempo. Jep
Gambardella acabara de completar 65 anos.
**
Li
muitas coisas sobre o festejado filme de Paolo Sorrentino "La Grande Belezza". Coisas como: a influência
de Fellini, Roma como cenário, a multiplicidade de temas num roteiro não
linear, um conflito entre o novo e o velho, clássico e pós-moderno, uma crítica
à futilidade da sociedade e à superficialidade da arte contemporânea, decadentismo,
brevidade do tempo, existência, hedonismo, enfim, um filme pretensioso...
Respondo a tudo isso com “Jepinho”: blá, blá, blá.
Nada
disso, isoladamente, parece-me tão relevante assim. Ainda que haja, de fato,
todas essas questões – o que já faria do filme algo genial –, "La Grande Belezza" trata, em verdade, de
algo infinitamente relevante e sutil: a experiência da vida como uma experiência
estética. Aí a coisa pega, e pega a todos nós. Ademais, não só por Roma e pelos
personagens caricatos vemos a presença de Fellini em “A Grande Beleza” como
dizem insistentemente os críticos. O grande maestro se faz presente no elemento
onírico que atravessa todo filme, mitigado, é certo, pelo estilo próprio de
Sorrentino. O que atravessa é o absurdo da realidade e do cotidiano, dos tipos
humanos, o ridículo que convive com a beleza, e, em meio a tudo isso, ao lado de toda superficialidade, do medo e de todas
as belezas, há sempre a grande beleza, aquela que não precisa de uma razão
controladora. Ela é. Para a grande beleza, há também uma “grande arte”. É essa experiência estética em estado bruto que chega, que
toca. Tudo isso é decantado finamente num roteiro propositalmente repleto de
experiências e tipos humanos: o padre (cotado a Sumo Pontífice) que jocosamente foge dos assuntos sérios e
espirituais e fala de receitas, a vida mundana de novos ricos e suas festas
bregas, os nobres decadentes com suas mansões suntuosas, a religiosa tratada
como “santa”, a pintura contemporânea feita por uma criança que joga tintas aleatoriamente em um
painel. No centro do filme esta o olhar de Jep Garmbardella, um “bon vivant”,
um cético jornalista que escrevera apenas um livro, e que vive os tormentos do
tempo e a lembrança da mulher que amara. É neste aspecto sutil que o filme "La Grande Belezza" pode ser chamado, sem exageros, de obra-prima: exatamente
pela experiência estética proporcionada pelos olhos de Jep Gambardella. Jep somos todos nós. Dessa identidade humana é que se faz a grande arte.
*
Jep
Gambardella escrevera apenas um livro. O que ainda há por ser dito? Tudo já foi descoberto
pela razão. As coisas inevitavelmente passam. Pessoas morrem. Frestas ficam. Cicatrizes. Talvez
possamos, à noite, encontrar aquele amigo que é o guardião das chaves dos palácios para então passear por entre os salões da tradição e assim trapacear com o
tempo. Talvez possamos nos fechar ao falatório do cotidiano. Ir ao silêncio dos
antepassados e beber dos clássicos seu vinho raro. Tocar o mármore primevo do
sentido com o cinzel utilizado pelo demiurgo que deu forma e vida a tudo isso que não se
explica. Mas Jep sabia que não há escapatória: há festas, riso, dança, sexo,
rotina e ela, sempre ela, a sensibilidade. No fundo, o instante desencontrado do
amor é a grande arte, seja ela o que for.
Por tudo
isso é que não se consegue sair do cinema imediatamente após o término de a “A Grande Beleza”. Letras descem (ondas, ondas) e lá ficamos, paralisados. Entramos em nosso Coliseu. De repente, por segundos, pairamos em um território inóspito de nós mesmos, onde girafas, cadeiras e o cinema desaparecem. É que ela, mais uma vez ela, sempre esteve ali: nesse lugar que às vezes voltamos, mesmo sabendo que tudo
é um truque.
Bravo!
08.02.2014
Vladimir
Luz
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