“Não sou eu
quem me navega
Quem me
navega é o mar”
(Timoneiro
– Paulinho da Viola)
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Marc Bloch já teria dito que a grande
tentação do historiador é a genealogia. A fascinação pela origem, a gênese, o
inicio de tudo. Essa tentação também é um grande desafio. Afinal, como
identificar, numa cadeia de fatos complexos e caóticos, a raiz fática, o ponto
causal onde tudo se desenrola e faz gerar certas conseqüências e não outras? Indo
além: uma grande “história” seria o conjunto de invisíveis “estórias”? Como
mensurar, no mosaico da vida humana, os detalhes invisíveis de centenas,
milhares de fatos? Qual o lugar, nesta narrativa que chamamos “história”, do
não-dito, daquilo que esta radicado na memória pessoal e em nada mais? De quantos
silêncios se faz uma grande história? Foi lá no Imbuhy que este tema me veio à
mente.
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Seu Navega é um artesão de mão cheia.
Não havia canoa que passasse pelo Imbuhy que ele não desse jeito. Navega tem
aquelas mãos raras, olhar apurado dos fazedores de coisas. Há pessoas, como Seu
Navega, que nascem com essa inata manualidade-do-mundo. Uma habilidade
concreta, inserta entre a idéia e a concretude. De uma peça bruta de madeira ele
faz nascer uma escultura; seu dom é o de consertar, o de construir, o de (des)velar.
Foi Ailton, seu filho, quem me disse que seu pai (Navega) foi ampliando e
reformando sua casa aos pouquinhos. Como era impedido pelos militares de entrar
com material, Navega ia e voltava várias vezes, de bicicleta, trazendo o
material de construção em pequenas partes para levantar a laje da casa. Ailton
lembra vivamente o esforço do seu pai e de sua família, na calada da noite,
unidos, levantando e ampliando partes da casa que ainda hoje residem na Aldeia
Imbuhy.
Foi assim que, numa reunião com os
moradores do Imbuhy, pude fitar Ailton diretamente nos olhos, e ele me disse
mais ou menos assim: “é por essa casa, por este esforço de meu pai que eu luto
pra ficar aqui”. Nenhum arrazoado jurídico poderia ser mais convincente, para
mim, do que o silêncio que se seguiu após esta confidência.
***
Quando tudo começou? Seria a partir da
primeira bandeira do Brasil bordada pela Dona Iaiá? Ou a genealogia estaria no
tempo em que as canoas partiam livres rumo mar adentro, e, como diz Jorginho,
“se pegava os peixes de mão”? Ou a gênese estaria refletida em centenas de estórias
de amor e de perda que se sucederam? Casas demolidas são apenas fragmentos de
estórias? Ou tudo já vem desde quando o último Tamoio pereceu aqui por perto
onde hoje há fumaça e asfalto?
Vai saber...
Por enquanto há motivos para se
pensar nessas estórias inauditas que vamos colhendo aqui e ali. Afinal, Assessoria
Popular não seria outra coisa, senão apurar os ouvidos e a sensibilidade? Relatos,
silêncios e gestos que são como as esculturas de Seu Navega, canoas sem destino
neste marzão de sentido. Talvez Warat concordasse com isso: a origem é sempre afeto.
09 de
setembro de 2015
Vladimir de
Carvalho Luz