Painho
falava pouco. Eu achava que era comigo. Depois, descobri que era o jeito dele.
Nos poucos momentos em que ele falava, eu gostava de ouvir sua voz grave. Mal
via seus lábios mexendo por baixo do bigode grisalho. Ele tinha umas tiradas,
uns gracejos sobre qualquer situação. Depois, na Faculdade, descobri que o nome
disso é chiste. Também tinha aquelas frases, adágios que ele repetia direto,
tipo “só acaba quando termina”. Sempre que a coisa parecia sem solução, Seu
Geninho soltava o “só acaba quando termina”. Também descobri que, sob a casca
daquele homem de olhar grave, de pouca intimidade com estranhos, havia um humor
refinado. E que o humor pode ser uma ética, uma sabedoria. Painho, seu Genivaldo, Geninho para meus
tios, era assim: disciplinado, calado, mas bem-humorado. Todavia, se o gelo
fosse quebrado e ele lhe desse ousadia... Ai... Você iria do céu ao inferno.
Ele gostava de samba e do trabalho. Era motorista da linha São Cristóvão – Barroquinha.
Se orgulhava de ter uma filha que fez Faculdade na Federal. Um dos poucos
momentos em que vi meu pai sorrir e chorar foi na minha formatura, quando ele
teve de me entregar o canudo, e, num breve momento, nossos olhos se cruzaram, e
eu vi a alegria de sua alma. Mãinha era sua grande companheira. Ele dizia que
éramos as donas dele. Eu achava diferente. Eu achava painho uma espécie de rei
africano, solene e altivo. Filho de Xangô, não tolerava injustiça. Quando via
uma injustiça, sai debaixo... Injustiça é sempre a covardia com o mais fraco,
dizia. Também na Faculdade estudei isso. Sobre autoridade, a justiça e a
injustiça. Seu olhar de reprovação era pior que um tapa. Era como se seu amor
fosse expresso no rigor. Ele dizia “Sou pelo justo, nem mais nem menos”, e bufava:
“Runf...”.
Além
de mim, mãinha, a firma e o samba, sua outra família era o Esporte Clube Bahia.
O Baêa era uma das poucas coisas que tirava painho do sério. Aquele ser de ar formal
se transformava em dia de jogo. Talvez as poucas vezes que vi painho xingando
era quando o Bahia entrava em campo. Se bem que, “disgraça”, na Bahia, nem
xingamento é. Ele gritava “disgraça de juiz” o tempo todo. Não sobrava um, ele
picava a porra na mesa, ficava uma fera. Nem era bom se meter com ele nessas
horas. Eu tenho um tio gaiato que traiu nossa família e se bandeou pro lado do
time do Vice, o Vicetória, essa carniça. Quando o Bahia perdia, meu tio Felício
ligava (naquele tempo era telefone de disco e nem existia celular), e era pra pirraçar painho. Viviam se ofendendo por causa da rivalidade da gente com o
pessoal do Lixão. E, no dia que meu tio chegou em casa depois que o Bahia perdeu
um BA-VI? Ave Maria... Foi um rebuliço naquela casa. Esse mesmo tio, uma vez,
contratou um carro de som, para, de manhã cedo, ficar tocando o hino do
Vicetória na frente de nossa casa, ali na Mouraria. Menino, nunca esqueço: meu pai nem tinha areado
os dentes, desceu virado na zorra e foi discutir com o homem da Kombi, coitado,
que apenas foi pago para realizar aquela cena! Hoje, eu penso que essa
rivalidade, com tons teatrais, era o que havia de mais precioso e genuíno na
relação deles.
Painho
me levou em vários jogos do Bahia na Fonte Nova. Cresci com a memória da
descida da ladeira da Fonte, as cores, o zum zum zum... Esses fatos ficaram na
memória, nas minhas lembranças dos momentos que tive com ele quando jovem, como
no dia da formatura. Há também uma lembrança que me pego degustando até hoje.
Quando ele me levava para escola algumas vezes. E, no caminho, me perguntava
das coisas da escola, e também comprava mingau com a senhora que ficava na
frente do Colégio Central. Ele colocava canela no mingau. Adorava café, e vivia
de prosa com os meninos do carrinho do café, empreendimento móvel que só existe
em Salvador, o que deve ter adiado a vinda dessas franquias chiques de café
para esses lados. Até hoje, o cheiro de canela me faz lembrar desse caminho. Incrível,
né: um cheiro, uma cor, uma música nos transportam para lugares e tempos
distantes... A verdadeira máquina do tempo são os sentidos. A outra lembrança marcante
que tenho foi quando ele me levou na Fonte Nova antiga. Eu era pequena, mas já
tinha minha camisa tricolor. Era um BAVI, final de campeonato, o Bahia precisava
apenas de um empate para ser bicampeão baiano, mas estava perdendo de um a
zero.
Painho
estava mais nervoso do que o de costume. Xingava o tempo todo. Eu me lembro da
torcida impaciente. Meu sentimento, naquele dia, era confuso: estava alegre por
partilhar com painho aquele dia especial de ver o Baêa, mas nervosa com a
apreensão dele. O risco do “destriunfo” era grande. Eu queria ganhar, e não
suportava imaginar a pirraça dos vicentinos se aquele placar nos tirasse o
título. Painho segurava com a mão seu radinho de pilha colado no ouvido; ele só
ouvia a Sociedade AM. Pensei em alguns instantes: aquele ser era sempre tão
seguro, mas quando estava diante de um jogo de futebol, revelava, finalmente,
as fraquezas do humano. A fortaleza Geninho, enfim, mostrava suas fragilidades
a meus olhos de criança. E estávamos ali, juntos, agoniados e torcendo. Acho
que meu amor pelo futebol e pelo Baêa vem daí. Penso, a partir disso, que a
verdadeira herança que nossos pais podem nos legar são seus afetos. Depois, eu
descobri, pelos livros e me vendo pelos espelhos da vida, que eu queria, pelo
meu desejo de ter o desejo de painho, ser parte do seu amor, o Bahia. Estudei
isso mais tarde na Faculdade, e depois, já no exercício de meu ofício – que
consiste basicamente em fazer com que as pessoas se ouçam ao falarem para mim
–, todas essas questões foram ficando mais sensíveis.
Naquele
dia, tudo para mim se resolveria se o Bahia fizesse um gol. Bastava um gol para
nos libertar; bastava um gol para eu poder gritar com meu pai e com a massa.
Pois bem. Já estávamos no finalzinho do segundo tempo, e o Bahia precisava apenas
de um golzinho para ganhar o campeonato baiano. O tempo passava rápido, 42 minutos
do segundo tempo. Eis que, quando tudo parecia perdido, depois de um bate e rebate,
a bola sobra na entrada da área, e um jogador do Bahia aproveita, chuta e...
GOL! Não sabia o nome daquele jogador na
época, só sabia que ali estava um herói. Eu meio que duvidava dessa estória de
heróis. Quando era pequena, meus professores diziam que heróis eram só os dos gregos;
tempos depois, descobri que há muitos outros heróis, como minhas avós, que
seguraram a onda de toda uma geração. A gente só está aqui pela luta dos que
vieram antes. E, assim, fui descobrindo esse heroísmo do cotidiano, da
ancestralidade por vezes sem voz. E nessa minha aprendizagem, entre estudos e
Fonte Nova, passei a decorar os nomes de alguns jogadores do Bahia. Havia os
mais famosos, por causa do título nacional de 1988, Charles, e a eterna
elegância sutil de Bobô. Mas eu também sempre fui meio assim, como se diz, “do
contra”. Um astrólogo me disse que é por causa do meu signo, Aquário. Não
acredito em horóscopo. Quer dizer, só quando a previsão é boa pra mim. Por causa
desse meu jeitinho, eu sempre olhava para além do que todo mundo enxergava. Por
isso, eu gostava de um herói de 1988 nem sempre exaltado, Paulo Rodrigues, que,
para mim, era a personificação da metáfora “jogar de terno”; também tinha Baiaco,
“o pulmão tricolor”. Metáforas bonitas da zorra, vamos combinar...
Então, nesse dia eletrizante, esse gol foi o
gol libertador, o do título! Os gregos (de novo) têm uma palavra pra isso, mas
esses aí também não tinham mais o que fazer, não tinham uns “corre”, e ficavam
inventando palavra pra tudo. “Cartarse” é a dita palavra. A torcida explodiu de
forma catártica. Ou, como falamos aqui, “lavamos a alma”, uma lavagem das
escadarias das igrejas de nossos desejos. Foi isso. Em meus ouvidos reverberava
o barulho dos fogos. Todos pulavam. Era aquela energia, que, anos depois, pude
vivenciar, na pipoca do Chiclete passando pela Avenida 7, subindo a Castro
Alves. Foi aí que, depois do gol salvador, olhei para painho: seus olhos
estavam marejados, voz rouca, gritando: “Bora Baêa minha Porra!!” Após o jogo, painho
me colocou sobre seus ombros, “na cacunda”, como dizia, e saímos em cortejo da
Fonte Nova. Era maravilhoso ver todos pelo alto, gritando alegremente. A festa
foi longe...
Sinto
falta da voz de painho. Às vezes me pego ouvindo ele praguejando nos corredores
da casa. Em dias de jogos do Bahia, como hoje, essas coisas
batem mais fortes. Fecho os olhos e tudo me aparece vivamente. E, em dias de
jogos difíceis, ou quando algo aperta a minha mente, sou capaz de ver seu
Geninho falando: “Só acaba quando termina...”. É uma sensação real de presença.
É justamente como vi num filme certa vez, ou seja, a verdadeira morte é ser
esquecido. O amor é um tipo de memória. A vida acaba, mas as pessoas que amamos
não terminam: elas povoam nossas memórias. Aprendi isso na Faculdade e na vida.
Ah, o nome do jogador é Raudinei. Isso ficou marcado na História como o famoso
gol de Raudnei. Para uns, um gol salvador, uma lição de persistência. Para mim, é tudo isso e muito mais. Mas chega
de laranjada, está na hora de ir pra Fonte Nova: mais um jogo... Vou levar meu
filho para seu primeiro BAVI. É isso, então. Como eu disse antes, a única coisa
preciosa que podemos legar para aqueles que chegam depois são os nossos afetos.
Hoje, penso muito sobre a importância de esses afetos permanecerem vivos na
gente. E que eles possam sempre nos habitar em qualquer momento do jogo, mesmo
aos 42 minutos do segundo tempo. São memórias que podem correr todo o campo, e
nos tocam pelas lembranças de um cheiro, um sabor, um olhar ou apenas um gol.
B.B.M.P!
Vladimir Luz, Niterói (RJ),
08.07, 2023.